"Sempre que os polícias passavam por nós davam-nos pontapés"
Ainda não consegue distinguir o que mais o marcou: se os socos e pontapés ou os "comentários racistas". Esta terça-feira foi a vez de Miguel Ângelo Reis, morador da Cova da Moura, falar perante o coletivo de juízes. Conta ter sido o último das seis alegadas vítimas a ser levado para dentro da esquadra. Diz que foi puxado pelo próprio cabelo, na altura coberto por rastas, três das quais arrancadas ao ser puxado para o edifício policial."Atiram-me para o chão, dão-me socos e pontapés. Ficamos todos deitados no chão. Continuámos a ser maltratados e a ouvir insultos. Sempre que passavam por nós davam-nos um pontapé", recorda.
"Estava de cara no chão, não vi nada". Mas os outros sentidos parecem ter bastado para hoje contar a história na primeira pessoa. Com 22 anos, atualmente desempregado e solteiro, é o quarto ofendido a ser ouvido em tribunal, mais de três anos após o dia em que ele e maiscinco jovens alegam ter sido agredidos verbal e fisicamente por agentes da PSP na esquadra de Alfragide.
O que aconteceu no dia 5 de fevereiro de 2015 ainda conhece duas versões - a dos ofendidos e a dos arguidos -, mas conduziu a julgamento os 17 agentes da esquadra de Alfragide, acusados de racismo, tortura e difamação. Já na anterior sessão, Miguel recordava os primeiros momentos daquele dia, em que se teria dirigido com mais quatro jovens até ao estabelecimento policial. O discurso batia certo com o já apresentado pelas outras alegadas vítimas - Bruno Lopes, Flávio Almada, Celso Lopes e Rui Moniz, todos atuais ou antigos moradores do bairro.
Já foi identificado numa rusga, mas esta teria mesmo sido "a primeira vez numa esquadra". Naquele dia, já após o aparato policial no bairro, que acabaria na detenção de Bruno Lopes, Miguel terá saído de casa em direção à Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ), local que frequentava habitualmente. Cruzou-se com Flávio Almada - outra das alegadas vítimas -, a quem chama de "mentor", que o convidaria para ir com ele até à esquadra onde Bruno estava detido, "para ver como se lida com a polícia". Flávio, membro da direção e agente de educação familiar na associação, tinha como função moderar conflitos entre moradores do bairro e polícia. É conhecido como um pacificador e o convite a Miguel, para o acompanhar até ao estabelecimento policial, teria chegado com o intuito de o ensinar.
À frente, Celso e Flávio. Atrás deles, seguiam-se Miguel Reis, Angelino Almeida, Rui Moniz, Paulo e Fernando Veiga. Quando se terão apercebido que seriam agredidos pelos agentes, tentaram fugir. "Eram seis a 10 agentes" e apenas Fernando e Angelino conseguem escapar. Foram abordados por um polícia numa scooter, fora da esquadra, que já teriam visto a caminho de lá. Terão sido "deitados ao chão" por esse e outros polícias.
Já lá dentro, terão sido constantemente agredidos com socos e pontapés.Uma dessas agressões terá deixado Miguel sem um dente e o estado físico em que se encontrava depois das alegadas agressões foi suficiente para, quando transportado para a esquadra da Damaia para ser fotografado, ele e Flávio terem ficado de fora. "Disseram que não estávamos em condições".
Em contrainterrogatório, a mandatária de defesa dos arguidos questionou Miguel sobre a hipótese de o dente que diz ter perdido já não existir antes dos acontecimentos, uma vez que os relatórios médicos das urgências do Hospital da Amadora - para onde foi transportado no mesmo dia - não indicavam "hemorragia ativa". O jovem parece ter ficado confuso com a pergunta, mas respondeu: "Perder um dente não é como perder um chapéu. Eu tinha aquele dente e senti-o a sair".
Não esquece o sangue que cobria o chão da esquadra, quando entraram. Sem saber de onde provinha e obrigado a manter-se sempre de olhos postos no chão, garante que "era sangue de todos".
Miguel recorda ainda o momento em que os seis jovens são levados para um "calabouço", enquanto esperavam para serem ouvidos pela primeira vez em tribunal, onde as agressões verbais terão continuado. "Disseram-nos que íamos dormir em cima dos cobertores onde os outros (reclusos) se masturbaram", conta.
Há um momento que ainda suscita dúvidas em tribunal: afinal, como terá sido o primeiro encontro entre Bruno Lopes e os agentes da PSP? E por que terá Bruno sido detido? O discurso dos agentes acusados relata que a detenção do jovem ocorreu depois de este ter apedrejado a carrinha da PSP. Esta terça-feira, uma nova testemunha contou a sua versão ao coletivo de juízes. Vítor Moniz, 33 anos e massagista de profissão, garante ter estado no local onde tudo começou.
Sem certeza das horas, aponta o que presenciou para o início da tarde. "Fui fumar um cigarro à porta do café. Na altura, estava muita gente na rua e, de repente, ouço dizerem 'bófia, bófia, bófia' e começaram a correr. Os únicos que ficaram na rua fui eu e o Timor (Bruno). Pensei: 'não vou correr, estou só a fumar o meu cigarro'", começa por contar. Vítor terá visto aquilo que habitualmente diz ser uma "carripana" (carrinha policial) a passar na rua, a alta velocidade, e a parar um carro. Alguns agentes começam a sair para pedir os documentos ao condutor e "foi aí que tudo aconteceu".
"Vejo um polícia a olhar para o Timor e a rir-se para ele. Ele riu-se de volta e eu aconselhei 'não respondas'. De repente, começam a vir e a dar-lhe socos. Eu digo: 'o que é isto? Ele nem fez nada'. E um agente empurra-me para dentro do café, contra o balcão e a máquina de café. Fecharam-me lá dentro". Vítor diz lembrar-se de ver os outros agentes parados junto à carrinha, que entretanto se aperceberam do que acontecia e dirigiram-se a Bruno para o agredir também. "Só via polícias em cima dele. Eu vi logo que lhe iam bater", explica.
Dentro do café, com pouca visibilidade para o que se passava do lado de fora, o morador da Cova da Moura garante ter visto um dos agentes com uma caçadeira apontada para o que julgou ser a varanda de Jailza Sousa, uma das moradoras atingidas por balas de borracha neste dia. Ouviu três disparos. Jailza estaria com o filho a estender roupa e terá insultado os agentes antes do quarto disparo.
Depois disso, Vítor Moniz lembra-se de ter visto a carrinha policial abandonar o local, mas não se recorda de Timor entrar dentro da mesma. "Saí do café e as pessoas começaram a aparecer. Também a rapariga (Jailza), que estava revoltada e nervosa, a dizer que ia para a esquadra fazer queixa. Mas nós aconselhamos a ir ao tribunal de Alfragide. Eu não queria ir à esquadra, porque foram os agentes daquela esquadra que nos agrediram". Conta ainda que a moradora atingida estava a mostrar o cartuxo de borracha. Vítor diz ter abandonado o local antes de a discussão sequer terminar.
Questionado pela presidente do coletivo, Ester Pacheco, sobre a possibilidade de Bruno Lopes ser violento e isso ter despoletado aquela reação policial, respondeu negativamente, sublinhando que "ainda é daquelas pessoas no bairro que pondera sobre as suas atitudes". Tece o mesmo juízo de valor sobre Flávio, que diz agir sempre à base de "paz e amor". "Só quer ajudar. Nunca o vi discutir sequer. Se há pessoas violentas no bairro, ele não é de certeza uma delas".
Vítor Moniz conta a história sem tom de "surpresa" ou "novidade" na voz. Não só porque já se passaram mais de três desde o acontecimento que abalou o bairro, mas também porque este não é um caso fora do comum, garante. Conta até que quando viu o que tinha acontecido naquele dia, através dos jornais, disse para si mesmo "eu avisei-os".
O morador da Cova da Moura considera que "o que levou as pessoas a ir à esquadra não foi o Bruno, foi a rapariga atingida". "Vou ser sincero: o que acontece ao Timor acontece a toda a hora. É completamente banal". Explica ainda que "se alguém vai à esquadra de Alfragide perguntar por um amigo, já sabe que vai levar". Vítor diz que as forças policiais tendem sempre a agir "à base da violência" com tudo o que acontece no bairro e, também por isso, "quando eles estão na rua a fazer qualquer coisa, mandam toda a gente embora para ninguém ver".
Apesar do histórico violento que Vítor menciona, Miguel Reis diz só agora estar a sentir-se inseguro no bairro. Tinha 19 anos quando tudo aconteceu e garante que "antes não tinha medo" da polícia. Hoje, já não confia nesta autoridade. Ao contrário de outras alegadas vítimas, Miguel não recebeu apoio psicológico, tendo sido sujeito apenas a uma avaliação ao seu estado, na altura.
Em Portugal, juntar "polícia" e "violência" já mereceu a atenção da Europa. Na passada terça-feira, dia 2, foi divulgado um relatório da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (CECRI), em Estrasburgo, onde a ação da polícia portuguesa surge denunciada por ter elementos simpatizantes de discursos de ódio, racistas e homofóbicos. O documento enuncia, inclusive, o presente caso da Cova da Moura.