Sem troféus de guerra, Putin repete argumento para a invasão, mas vê brecha na UE

Dia da Vitória não foi usado pelo presidente russo para revelar próximos passos da "operação militar especial". Bruxelas não conseguiu avançar com o sexto pacote de sanções no Dia da Europa, enquanto planeia usar bens russos para a reconstrução da Ucrânia.
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Analistas e comentadores aguardavam com expectativa - ou temor - o discurso de Vladimir Putin na Praça Vermelha, durante as comemorações do Dia da Vitória. Iria o presidente russo declarar guerra formal à Ucrânia e desta forma mobilizar o exército na sua totalidade? Outros especulavam que nas horas precedentes poderia haver uma demonstração de força militar. Nada disso aconteceu. O presidente russo repetiu os argumentos que o levaram a decidir-se pela "operação militar especial" na Ucrânia para "desnazificar" e "desmilitarizar" o país vizinho.

A União Europeia, que comemorou, pelo seu lado, o Dia da Europa, voltou a demonstrar nas palavras um forte apoio a Kiev, mas em termos simbólicos mostrou a primeira brecha entre os 27 ao falhar o acordo para a aplicação da sexta ronda de sanções económicas à Rússia. A Hungria do nacionalista Viktor Orbán, mais próximo de Moscovo do que de Bruxelas, recusou o embargo ao petróleo russo.

O dia que marca a capitulação do nazismo, jornada cujo simbolismo do sacrifício de milhões de pessoas foi inflamado pelo regime de Putin para propagandear o patriotismo e devolver a nostalgia à União Soviética, ficou este ano associado à invasão da Ucrânia - e ativistas conseguiram contornar a censura oficial. A televisão russa foi pirateada e todos os canais passaram a chamar-se "Sangue nas nossas mãos" enquanto se lia a seguinte mensagem: "As vossas mãos estão cobertas de sangue pela morte de milhares de ucranianos e dos seus filhos. A televisão e o governo estão a mentir. Não à guerra."

Citaçãocitacao"Os países da NATO não nos quiseram ouvir [...] Abertamente, estavam em curso preparativos para outra operação punitiva no Donbass, a invasão das nossas terras históricas, incluindo a Crimeia." Vladimir Putin

Ao 75.º dia da guerra não declarada à Ucrânia, o presidente russo voltou a repetir as justificações para o ataque. "A Rússia repeliu preventivamente a agressão. Foi uma decisão forçada e oportuna. Foi a única decisão possível e correta para um país soberano, forte e independente", disse, depois de afirmar que a NATO estava a implantar infraestruturas militares e a enviar conselheiros para a Ucrânia.

O presidente começou o discurso enumerando batalhas históricas, desde Borodino, contra Napoleão, até Kiev e Estalinegrado, contra Hitler. "É assim que lutam hoje em dia pelo nosso povo em Donbass, pela segurança da nossa pátria, a Rússia", anexando pelas palavras a região leste ucraniana como já o fez na prática na Crimeia.

"É nosso dever manter a memória daqueles que esmagaram o nazismo, que nos legaram a vigilância, e fazer todo o possível para que o horror de uma guerra global não volte a acontecer", disse o líder russo antes de acusar os EUA e a NATO de não terem atendido os seus apelos para a constituição de um novo sistema de segurança e de terem planeado "uma invasão das terras históricas" russas, "incluindo a Crimeia".

Citaçãocitacao"Temos orgulho dos nossos antepassados, que, como outros povos, no âmbito da aliança anti-hitleriana, venceram o nazismo. Não vamos deixar que ninguém anexe essa vitória e se aproprie dela." Volodymyr Zelensky

"Os Estados Unidos começaram a falar da sua exclusividade após o colapso da União Soviética, humilhando não só todo o mundo mas também os seus satélites. Mas somos um país diferente, nunca abdicaremos do nosso amor pela nossa pátria, pela nossa fé e valores tradicionais, pelos costumes dos nossos antepassados", disse, traçando uma linha entre a mãe Rússia e o Ocidente. Lamentou que veteranos norte-americanos que queriam estar no desfile de Moscovo tenham sido "praticamente impedidos" de fazê-lo e saudou todos os exércitos aliados que "derrotaram o nazismo e o militarismo" - no preciso dia em que milhares de soldados, tanques e sistemas de mísseis desfilaram à sua frente. As condições meteorológicas não permitiram, contudo, a passagem de aviões militares em baixa altitude e em forma de Z, a letra que o regime associou à "operação militar especial".

Após cumprir um minuto de silêncio, Putin anunciou uma ajuda para as famílias dos militares russos mortos e feridos na Ucrânia. "A morte de cada um dos nossos soldados e oficiais é a nossa dor partilhada e uma perda irreparável para os seus amigos e parentes." A Rússia só por uma vez anunciou o número de baixas no conflito - 1300, em março -, quando a Ucrânia diz que os números rondam os 20 mil. Num discurso mais para consumo interno, o líder russo não abordou a possibilidade da mobilização de reservistas de que os russos têm falado com frequência nos últimos dias e que o Kremlin tem negado.

Os líderes da União Europeia queriam apresentar no Dia da Europa, e em resposta ao show militar de Moscovo, mais uma demonstração de unidade. Mas os planos foram furados por Budapeste, que rejeitou o embargo ao petróleo russo. A presidente da Comissão viajou à tarde para a capital húngara para se encontrar com o chefe de governo e saudou os "progressos" feitos durante as conversações. "A discussão desta noite com o primeiro-ministro Viktor Orbán foi útil para esclarecer questões relacionadas com sanções e segurança energética", disse no Twitter. "Fizemos progressos, mas é necessário mais trabalho", disse, acrescentando que iria organizar uma conferência para reforçar a cooperação regional em matéria de infraestruturas petrolíferas.

Citaçãocitacao"Amanhã teremos uma paz a construir. Teremos de fazê-lo com a Ucrânia e com a Rússia à mesa. Mas isso nunca será feito com a exclusão ou com a humilhação de qualquer uma das partes." Emmanuel Macron

Antes das conversações dos líderes, o porta-voz de Orbán citou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Peter Szijjarto, que comparou o pacote de sanções - que prevê suspender as importações de petróleo da Rússia até ao final do ano - a uma "bomba atómica" para a economia do país. Isto apesar de a Hungria, a par da Eslováquia e da República Checa, ter recebido autorização para continuar a importar petróleo russo até ao final de 2024. Budapeste quer um período de cinco anos para deixar de depender de Moscovo.

Noutra frente, a partir de uma iniciativa dos eurodeputados, Bruxelas planeia uma iniciativa para que as autoridades nacionais confisquem os bens congelados russos, a fim de angariar fundos para financiar a reconstrução do país invadido. A medida visa não só as propriedades imobiliárias e os iates de luxo, mas sobretudo os mais de 300 mil milhões de euros nas contas congeladas do Banco da Rússia nas instituições financeiras ocidentais.

Citaçãocitacao"O Kremlin quer eliminar o vosso [ucraniano] espírito de liberdade e de democracia. Mas estou totalmente convencido de que nunca serão bem-sucedidos." Charles Michel

Ao nível do simbolismo, a visita surpresa do presidente do Conselho Europeu a Odessa foi marcada pelo ataque de mísseis, que levou Charles Michel a refugiar-se num abrigo. O dirigente europeu sublinhou as pesadas perdas para a economia ucraniana devido ao bloqueio naval russo e afirmou que a UE estará sempre do lado dos ucranianos. Mas o presidente francês, Emmanuel Macron, pôs água na fervura europeísta de Kiev ao dizer que a entrada do país na UE pode "levar décadas". Ao falar no encerramento da Conferência da Europa, Macron sugeriu que a Ucrânia e outros países, como a Moldávia e a Geórgia, sejam integrados numa nova "comunidade política europeia".

O embaixador russo na Polónia, Sergei Andreev, foi atingido com um líquido vermelho por manifestantes pró-Ucrânia em Varsóvia quando tentava depositar uma coroa de flores para assinalar o Dia da Vitória. Os manifestantes, brandindo a bandeira ucraniana, gritavam "fascistas" aos russos e tentaram bloquear a passagem do diplomata em direção ao monumento, impedindo-o de colocar a coroa. Vários indivíduos atiraram-lhe então uma substância vermelha ao rosto e à roupa, e também atingiram alguns dos homens da comitiva. Houve também rixas entre pró-russos e pró-ucranianos. "Os admiradores do neonazismo voltaram a mostrar a sua face", disse a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Zakharova, no Telegram.

A embaixada russa tinha planeado realizar uma cerimónia oficial no local, mas foi cancelada após uma resposta negativa das autoridades. Após o incidente, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia disse ter protestado aos funcionários polacos "a respeito da sua indulgência para com os jovens neonazis", forma como os russos classificam os manifestantes. "A Rússia exigiu que a Polónia organizasse sem demora a cerimónia de colocação da coroa de flores, ao mesmo tempo que proporcionava total segurança face a todo o tipo de provocações", afirmou Moscovo.

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