Sem-abrigo: e quando não há uma casa para ficar de quarentena?
Imagine que a sua casa é uma tenda, ou nem isso - uma caixa de cartão, uma entrada de prédio. Ou que vai passar a noite a um dormitório num albergue. Que habitualmente almoça em refeitórios e janta o que lhe entregam na rua. Que se quiser lavar as mãos várias vezes ao dia dificilmente terá onde - não é que cafés e restaurantes gostem de ver não clientes utilizar as suas casas de banho - e se suspeitar de ter febre não possa medi-la (um termómetro não é a coisa mais óbvia para um sem-abrigo trazer na mochila).
Imaginar tudo isto é já de si difícil para a maioria de nós - mais difícil ainda que a possibilidade, a qual ainda há dois meses não nos passaria pela cabeça, de existir um vírus novo que levaria a Organização Mundial de Saúde a declarar, na tarde desta quarta-feira, o estado global de pandemia e países inteiros - mesmo aqui, na Europa - a entrar em quarentena global. Agora imagine estar nestas duas situações ao mesmo tempo. Quão vulnerável se sentiria sabendo que de um momento para o outro a taxa de ataque do vírus pode disparar, as ruas ficarem desertas e a bondade de estranhos escassear - ainda mais.
Porque há a possibilidade de os voluntários que em várias instituições trabalham com sem-abrigo, servindo ou entregando refeições ou prestando outros serviços, deixem de estar disponíveis para o fazer. Isso mesmo reconhece Henrique Joaquim, ex-presidente da Comunidade Vida e Paz e desde dezembro gestor executivo para a Estratégia Nacional de Integração dos Sem-Abrigo: "Os voluntários podem desvoluntariar-se ou por receio ou necessidade. Por exemplo, há uma associação no Porto que está a planear deixar de fazer as rondas de distribuição de comidas. Estamos já a equacionar a possibilidade de pedir à Proteção Civil para tomar o lugar das equipas se deixar de haver condições para estas trabalharem. Estamos também a tomar medidas a nível local para proteger quer as pessoas quer os técnicos."
Estas medidas, de acordo com o gabinete do vereador da Câmara de Lisboa responsável pela área das pessoas sem-abrigo, Manuel Grilo, e transmitidas nesta quarta-feira às instituições, passam pela indicação de que haja "à entrada dos equipamentos e nas carrinhas gel desinfetante ou uma alternativa equivalente, e máscaras para usar em caso de necessidade. As equipas também estão sensibilizadas para utilizar a linha SNS24 ou ou 112, consoante o nível de emergência de eventuais situações".
Foi também, prossegue a explicação da vereação, prestada por escrito, enviado "um desdobrável adaptado" às instituições com explicações sobre o covid-19 e as precauções para o evitar". Mas a formação de urgência para as instituições, pedida à Direção-Geral da Saúde, está marcada apenas para 19 de março - quando a situação pode estar já muito diferente.
"Estamos preocupados porque é uma população de risco", admite Henrique Joaquim. "É um grupo que está vulnerável e muito mais exposto do que a maioria da população, embora não tenha tantos contactos sociais e frequente menos espaços fechados. Estive hoje a falar com pessoas sem-abrigo para perceber se estão a receber informação, e disseram-me que nos sítios onde foram almoçar estiveram a falar com eles sobre isto."
Um desses sítios é a associação João 13, que serve refeições, oferece banhos e lavagem de roupa. O frade dominicano Filipe Rodrigues, que a dirige, vê as pessoas sem-abrigo que a frequentam "aceitar muito bem as nossas normas de prevenção. Temos desinfetante e desinfetam sempre as mãos à entrada e saída". Nas paredes da João 13 foram colocados cartazes informativos que a DGS enviou às instituições privadas de solidariedade social, e que o voluntário considera "muito benfeitos."
Mas crê que não chega. "Eles próprios [os sem-abrigo] deviam ter qualquer coisa consigo para limpar as mãos, não chega quando cá vêm. E talvez devesse haver alguém especializado em saúde em cada um destes locais, talvez até para fazer rastreio. Porque por exemplo dizem-nos nas instruções que as pessoas devem vigiar a temperatura, mas estas pessoas não têm termómetros."
A recomendação de que as instituições disponham de termómetros e máscaras para caso de necessidade foi apenas transmitida nesta quarta-feira por mail do NPISA - Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo - da capital, estrutura dependente da câmara que coordena e agrega 32 instituições, públicas e privadas, que trabalham na área.
Renata Alves, presidente da Comunidade Vida e Paz, esperava esse mesmo mail quando falou com o DN na tarde deste dia. "Temos estado a instruir as nossas equipas sobre as precauções a ter, mas não sabemos se não vamos ter de tomar outras medidas. Os voluntários estão a falar com as pessoas sem-abrigo sobre os cuidados a nível da higiene e temos desinfetante nas viaturas e no Espaço Aberto ao Diálogo (um local que esta população pode frequenta). Internamente estamos a reunir e estamos a assumir orientações. Já existem práticas adotadas em termos de planos de contingência internos. Mas estamos a aguardar outras instruções do NPISA até ao final do dia. É que são precisas medidas adaptadas a pessoas que em muitos casos têm doenças infetocontagiosas e são muito vulneráveis."
Uma das organizações vocacionadas para a intervenção específica de saúde junto dos sem-abrigo é a Médicos do Mundo, cujo porta-voz, Nuno Santos, declara que "desde a semana passada veiculámos notícias e esclarecimentos sobre o que é o vírus e no decorrer desta semana iremos tomar medidas para proteger esta população, numa ação concertada". Que medidas exatamente não diz, para além de referir que as equipas "proporcionam desinfetante de mãos" - quando contactam com as pessoas sem-abrigo.
Mas entre as medidas que claramente é necessário preparar, como parte do plano de contingência para esta população, está, sublinha o gestor para a Estratégia Nacional de Integração dos Sem-Abrigo, a da existência de espaços de isolamento e contenção onde as pessoas sem-abrigo poderão ser colocadas em quarentena se houver suspeita de contágio, ou mesmo, se houver necessidade de tal, em confinamento obrigatório (caso este fosse decretado para toda a população).
É algo, informa Henrique Joaquim, que "está a ser estudado". Alguns desses espaços poderão ser albergues que têm condições para ter pessoas isoladas, mas existe a necessidade de recorrer a espaços municipais: "Os albergues de Lisboa e do Porto já têm planos de contingência, estão a tomar medidas e a equacionar soluções para espaços de quarentena. E acabei agora mesmo de receber um mail do vereador do Porto para esta área. Basicamente estamos a fazer uma adaptação dos planos de contingência para as vagas de frio."
Mas no caso das vagas de frio trata-se de acolher as pessoas "por atacado", dando-lhes proteção e calor, situação que não é comparável com esta, na qual é essencial reduzir ao mínimo os contactos sociais. Existem meios, por exemplo na cidade de Lisboa, para assegurar a quarentena de todas as pessoas consideradas sem-abrigo que disso necessitem? Numa contabilização de 2018, serão cerca de 361 as que vivem na rua, sem teto, e 1967 as que estão em diversos locais de acolhimento ou alojamento temporário - casas-abrigo, quartos, etc.
Diz o gabinete do vereador Manuel Grilo, em resposta às perguntas do DN, que "está a ser articulado com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo o procedimento a ter quanto à quarentena de pessoas em situação de sem-abrigo. Neste momento já foi solicitado às organizações que têm respostas em equipamentos físicos que preparem salas de isolamento para em caso de necessidade. Além destas respostas, estamos a articular com o responsável pelo Plano de Contingência Municipal, o vereador Carlos Castro, e a DGS outras respostas para quarentena adaptadas à situação das pessoas em situação de sem-abrigo".
A preocupação com os sem-abrigo num contexto de pandemia está a aumentar em vários países - nomeadamente nos EUA; na Califórnia, o estado americano com mais sem-abrigo, estima-se em 44 mil o número de pessoas que vivem sem teto na zona de Los Angeles, a cidade de São Francisco anunciou um fundo de emergência de cinco milhões de dólares (cerca de quatro milhões e quatrocentos mil euros) para proteger os sem-abrigo do covid-19.
Em Portugal, como no que respeita ao resto da sociedade, a resposta em relação a esta população em específico evoluirá decerto com a situação. O que não sossega Filipe Rodrigues: "Se dá a mania de fechar tudo, esta gente não tem onde comer e tomar banho. Estou preocupado."