Não há memória recente de uma troca de galhardetes deste calibre entre dois chefes de Estado. Ou de insultos dirigidos por ministros a um presidente. Um tipo de linguagem muito distante da postura diplomática e que pode afetar consideravelmente as relações entre dois países. Protagonistas principais: os presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro, e da França, Emmanuel Macron..Sobre esta escalada de violência verbal, o DN falou com o embaixador Francisco Seixas da Costa. As redes sociais, um "detonador" chamado Donald Trump e até o deslumbramento de Bolsonaro por ter sido eleito são para o diplomata, que foi representante de Portugal na França e no Brasil, as causas principais do que está a acontecer..Mas antes da entrevista, para que se perceba o que está em causa, fazemos um resumo do que aconteceu nos últimos dias..Há uma semana, o presidente francês pediu que a cimeira do G7 discutisse o problema dos incêndios na Amazónia. Estava dado o tiro de partida para uma guerra de palavras, publicadas nas redes sociais, que sobretudo do lado brasileiro se traduziram em insultos a Macron e que chegaram depois a envolver a primeira-dama, Brigitte Macron..Em resposta à sugestão de Macron, o presidente brasileiro usou o Twitter para o acusar de ter mentalidade colonialista. E a partir daí o mundo assistiu de queixo caído a uma ampliação de comentários nas redes sociais, no mínimo, inéditos quando se trata de ministros ou presidentes a falar de outro chefe de Estado..O ministro brasileiro da Educação, Abraham Weintraub, chamou calhorda, oportunista e cretino a Emmanuel Macron, numa referência à oposição do presidente francês ao acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai)..As relações já estavam incendiadas, até que um cidadão brasileiro publica no Facebook uma imagem dos dois casais presidenciais, que têm sensivelmente a mesma diferença de idades. Brigitte Macron é 24 anos mais velha do que o marido, enquanto Michelle é 27 anos mais nova do que Bolsonaro. O post comparava a beleza das duas primeiras-damas e sugeria que essa era a razão para Macron "perseguir" o homólogo brasileiro. Bolsonaro não resistiu e foi lá fazer um comentário: "Não humilha, cara, kkkkkk.".Depois veio a resposta do chefe de Estado gaulês a acusar Bolsonaro de ser rude. E mais: "É triste. Penso que as mulheres brasileiras têm, sem dúvida, vergonha de ler isso do seu presidente. Penso que os brasileiros, que são um grande povo, têm um pouco de vergonha de ver este tipo de comportamento. Esperam um presidente que se comporte bem com os outros. E, como tenho muita amizade e respeito pelo povo brasileiro, espero que muito rapidamente tenham um presidente à altura.".Depois veio a ajuda de 20 milhões de dólares do G7 para a Amazónia, que Bolsonaro começou por recusar e que depois disse que aceitaria caso Macron retirasse os insultos..A postura e linguagem dos governantes brasileiros em relação ao presidente francês - e até a resposta de Macron - representa uma nova deriva da diplomacia internacional? O que é claro nos últimos anos é alguma degradação de regras de comportamento que era vulgar existirem entre os responsáveis dos vários Estados, como que uma espécie de liturgia comportamental que marcava o ritual internacional. Isso tinha vantagens porque preservava uma área de relacionamento - mesmo que tivesse algum artificialismo - que se regia por regras básicas de educação e de entendimento formal. Nos últimos anos, e aqui há um papel objetivo das redes sociais, há a veiculação de comentários de alguns dignitários estrangeiros contra partes ou contra os seus homólogos, através da utilização de uma linguagem que está mais próxima da linguagem popular e sem um certo revestimento diplomático..Esse revestimento diplomático tinha vantagens... A diplomacia tem a vantagem de preservar um certo decoro, até formal, do relacionamento entre os Estados. E é isso que tem permitido à comunidade internacional sobreviver ao longo das décadas, em particular com 193 países com culturas diferentes, com práticas diferentes. Mas todas elas respeitam tendencialmente aquilo que são as regras previstas na Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas. O que parece acontecer nos últimos anos é que alguns dignitários de cargos públicos em alguns Estados membros deixaram-se como que colonizar pela linguagem mais comum veiculada nas redes sociais, que eles utilizam cada vez mais. E isso leva à degradação do relacionamento à escala internacional. Essa degradação assumiu, como se viu agora no caso do Brasil e da França, níveis impensáveis há alguns anos..E podem ter consequências irreparáveis? Vamos ver este caso específico. É evidente que é normal que haja alguma acrimónia por parte do governo brasileiro relativamente ao modo como o governo francês se comportou. Como faz parte das regras, o governo brasileiro tem uma leitura diferente, o governo francês tem uma leitura diferente. Mas há maneiras de expressar isso. Ao colocar nas redes sociais o comentário do ministro da Educação e do próprio presidente Bolsonaro, com nomes e designações que são aviltantes para o presidente francês, é óbvio que no futuro próximo as coisas não serão iguais no relacionamento entre os Estados. E o grande drama disto é que as relações são entre os Estados e os líderes são conjunturais, mas acabam por criar dificuldades no relacionamento bilateral - e isso tem impacto nos agentes económicos, nos cidadãos franceses que operam no Brasil, igualmente no modo como os cidadãos brasileiros são vistos em França. Amanhã vai ser preciso os franceses sentarem-se à mesa com os brasileiros e é importante deixar alguma porta aberta..Falou em linguagem popular, mas o ministro insultou Macron e no caso da primeira-dama francesa o comentário é muito desagradável... O recurso do presidente Bolsonaro às redes sociais, corroborando um comentário de péssimo gosto sobre o presidente francês, é um gesto pouco amistoso e muito desagradável relativamente ao líder de um país com o qual o Brasil tem excecionais relações. Convém dizer que a França, no quadro internacional e no quadro europeu, sempre preservou e tentou impulsionar as relações com o Brasil. Estamos perante um degradar de relações - espero que pontual - que não ajuda ninguém.."O presidente Trump é o pano de fundo que dá origem a tudo isto".E a reação do presidente Macron? Acho que todas as pessoas compreenderam a reação do presidente Macron, mas não acho que tenha sido a mais feliz. Ao dizer que espera que o Brasil venha a ter um futuro presidente com quem se pode tratar, isto como que fecha por um período substancial a possibilidade de se entenderem. E as relações franco-brasileiras vão muito para além do que é o relacionamento entre os chefes de Estado..O presidente americano, Donald Trump, tem sido um detonador deste tipo de linguagem nas redes sociais? O presidente Trump é o pano de fundo que dá origem a tudo isto. A partir do momento em que o líder da maior potência mundial utiliza as redes sociais de uma forma muito aberta, eu diria quase de uma forma desbragada, isto autoriza os líderes de outros países a seguirem o mesmo procedimento. O presidente Trump foi o mau exemplo que abriu caminho a este tipo de utilização de expressões que possam criar problemas bilaterais. Trump está na origem de tudo isto, a meu ver..E estas situações não têm que ver com a qualidade política e com a educação de quem está nestes cargos? As pessoas são escolhidas pelo eleitorado. O que acontece é que os eleitorados tendem em alguns países a fazer escolhas que, estando próximas daquilo que é o sentimento comum, às vezes não são as pessoas que se esperaria que liderassem esse sentimento comum. E isso é que, a meu ver, degrada as coisas. A qualidade das escolhas políticas é dos eleitores, não há aqui uma perversão da natureza democrática, há se calhar um abaixamento do nível de decência e uma "democratização" da própria escolha. Pela simples razão de que cada vez mais estes líderes, até na sua linguagem, na forma como se expressam, no primarismo das suas atitudes, correspondem muito àquilo que é o sentimento de uma linguagem popular que estava mais ou menos escondida atrás de uma retórica de entendimento que se utilizava para manter as coisas a funcionar.."Bolsonaro está iludido sobre o que pode fazer no campo internacional".Este tipo de linguagem pode piorar? As pessoas perceberam que isto chegou a um ponto em que haverá um damage control, com contactos bilaterais a vários níveis. O Brasil, a meu ver, está a correr um grande risco. O presidente brasileiro e a administração brasileira parecem não perceber que aquilo que é permitido aos Estados Unidos não é permitido ao Brasil. A expressão de determinados sentimentos até de natureza política e a expressão à escala global desses sentimentos também depende muito da força de quem titula essa tomada de posição. Os Estados Unidos podem fazer muitas coisas e o Brasil não pode. Acho que o presidente Bolsonaro está a fazer uma espécie de um mimetismo tropical do presidente Trump. Está iludido relativamente àquilo que pode fazer no campo internacional, não percebendo que para um país como o Brasil, que é um país com legítimas ambições no quadro internacional, ao nível da afirmação institucional, este tipo de comportamento não é de todo benéfico. Pode pontualmente representar um certo orgulho nacional ferido, tentando mobilizar um certo nacionalismo brasileiro, que existe em particular na questão da Amazónia. Mas é uma questão puramente pontual..Para que as relações entre os dois países não fiquem afetadas há um grande trabalho a fazer ao nível da diplomacia? Os diplomatas procuram não deixar passar as questões de um determinado limiar de tensão, para evitar que elas se agravem. Não estou a ver como é que a diplomacia neste quadro possa fazer melhor do que está a fazer. E digo isto com muita pena, porque a diplomacia brasileira é das mais prestigiadas do mundo e deu sinais com outros governos de várias tendências de conseguir representar extraordinariamente os interesses do Brasil e colocá-lo num patamar de afirmação institucional. Devo dizer que imagino a dificuldade que hoje em dia atravessam os diplomatas brasileiros para conseguir defender os interesses do país, apesar do presidente Bolsonaro..Esta linguagem utilizada pelos chefes de Estado, que cada vez mais usam as redes sociais, também pode piorar? Ou são meros maus exemplos? Acho que deve haver a consciência de que se foi longe demais neste tipo de linguagem e que as pessoas vão ser mais cuidadas, mesmo na expressão das suas próprias divergências. Não tenho expectativas de que se vá agravar.."Presidente brasileiro está deslumbrado pelos poderes que ganhou ao ter sido eleito".Como diplomata, e até do ponto de vista pessoal, o que chocou mais: o comentário à primeira-dama francesa ou o ministro a chamar cretino e calhorda ao presidente francês? Foi tudo. O que me custa é que a expressão internacional dos interesses do Brasil esteja raptada por um discurso simplista, primário e que não tem em conta os aspetos de fundo e a longo prazo dos interesses do país. Acho que há um deslumbre do presidente Bolsonaro pelo lugar que ocupa, acho que esse deslumbre tem muito que ver com o presidente Trump e acho que o Brasil sofre da falta interna de quem tenha uma voz de ponderação e possa pôr água na fervura quando há excessos..O comentário sobre a primeira-dama francesa é machista? O comentário é obviamente machista. Diria que é normal num certo nível de linguagem das redes sociais, o que é anormal é o presidente subscrever esse comentário. É falta de bom senso e mais do que isso: é falta de perceção sobre as consequências que este tipo de atitude tem. E isso revela, volto a dizer, um certo deslumbre que ele vive pelos poderes que ganhou ao ter sido eleito. Está convencido de que a sua eleição lhe permite tudo, mesmo pôr em causa alguns equilíbrios fundamentais para o interesse do país. Portanto, se calhar este tipo de crise, a crise da Amazónia e os impactos que teve, a reunião do G7, as ameaças sobre o acordo UE-Mercosul, se calhar podem funcionar como um banho de realismo e pragmatismo na cabeça do presidente Bolsonaro.