"Se tiver boa qualidade do ar estou a diluir o vírus na sala de aula"
Manuel Gameiro da Silva está entre os 239 cientistas de 32 países que escreveram uma carta à Organização Mundial da Saúde (OMS) para que alterasse as recomendações de proteção contra o novo coronavírus e admitisse a possibilidade de infeção através de pequenas gotículas suspensas no ar, os aerossóis. A OMS viria a acatar a opinião dos especialistas dias depois.
Nesta conversa como DN, o especialista em qualidade ambiental dos edifícios fala da importância da renovação do ar nas salas de aula e considera mesmo que as escolas deveriam estar equipadas com aparelhos de medição de dióxido de carbono. Mais: diz que na questão da covid-19 as engenharias também têm uma palavra a dizer.
Como se pode manter a qualidade do ar dentro da sala de aula e diminuir o risco de contrair covid-19? Um especialista alemão defendeu aulas mais curtas para se poder renovar o ar...
É difícil atirar com uma regra geral quando temos realidades tão diversas com estabelecimentos de ensino com idades tão diferentes, uns com 200/300 anos, uns extremamente recentes, projetados, construídos e aprovados com legislações completamente díspares. Aquilo que podemos ter nesses edifícios é completamente diferente. Já cometemos o mesmo erro em relação aos transportes, tratámos tudo de forma igual quando não são de maneira nenhuma iguais. Temos de saber com o que estamos a lidar e isso significa fazer avaliações e isso faz-se usando métodos científicos, não é só por umas entidades dizerem que achavam que não estava bem. Isto não é uma coisa para se achar, é uma coisa para se analisar. O problema da gestão destes assuntos é que tem sido feita com muito pouca engenharia.
E como é que a engenharia pode entrar para ajudar a minimizar o risco?
Um dos pioneiros da qualidade do ar, um cientista alemão, dizia que o que importa é a dose. E a dose é o produto do tempo de exposição pela concentração média. Se eu tiver metade do tempo, posso ter a mesma dose, se a concentração for o dobro. Seja para contrair uma infeção seja para ficar intoxicado por um poluente químico, o que importa é a dose a que a pessoa está sujeita e, portanto, o que estava a fazer o professor de Berlim quando dizia que as aulas deviam ser de meia hora era tentar reduzir a dose. Mas, além de reduzir a dose, devemos reduzir a concentração.
E como?
A ventilar.
Como, quando a maior parte dos edifícios não têm sistemas para isso?
Pode fazer-se com alguma ventilação natural, mas também ainda há tempo de começar a pensar em instalar alguns sistemas de ventilação. Só consigo ventilar quando faço admissão de ar novo. O que estou a tentar fazer é diminuir a concentração do vírus num volume maior de ar. Imaginemos que tenho um bocadinho de vinho no fundo de um copo, se encher o copo todo de água aquele líquido vai diminuir.
O que é que tem mesmo de ser feito?
Não há uma solução única, tudo depende do que temos em cada tipo de edifício. Aliás, neste momento a pergunta mais importante, que não temos ainda respondida, é qual é o limiar de infecciosidade. Isto é, a que dose é que uma pessoa saudável tem de ser sujeita para ficar infetada? Porque será em função disso que devemos fazer o dimensionamento dos sistemas. Imaginemos que tenho uma sala de aula e nessa sala há uma pessoa infetada a libertar uma quantidade de vírus para o ambiente. As pessoas que lá estão ficarem ou não infetadas depende sempre de uma batalha entre os assaltantes que são o vírus e o sistema imunitário, que são os defensores...
É uma boa imagem...
Claro que se os assaltantes forem em número muito grande ganham a batalha. Se forem em número pequeno, ganham os defensores. Mas esta relação - quantos têm de ser os assaltantes para que a vitória seja para o lado do vírus - não sabemos exatamente qual é. Na ignorância relativamente a isso, aquilo que devíamos tentar é diminuir ao máximo o número de assaltantes. E para isso precisamos de ventilar. Acho que vamos ter uma mudança de paradigma em relação a estas coisas da qualidade do ar por causa da pandemia. Até agora os códigos de engenharia em relação à ventilação estavam maioritariamente estabelecidos em função dos valores de referência dos poluentes químicos, como o monóxido de carbono, o dióxido de carbono, o ozono, os compostos orgânicos voláteis. Esse conjunto de poluentes era o que estava na base da forma como calculávamos os caudais de ar novo que precisávamos para os nossos espaços. Admito que vamos ter de pensar também nos poluentes biológicos.
A pandemia é também um desafio para as engenharias?
Sim. A partir do momento em que do lado das ciências da saúde me digam que a dose máxima que deve ser considerada é de um determinado valor - normalmente, são unidades formadoras de colónias por metro cúbico vezes um tempo. Imaginemos que mil unidades formadoras de colónias por metro cúbico, basicamente mil vírus por metro cúbico durante uma hora, era o limiar de infecciosidade. Então, o que é que eu tinha de fazer? Sabendo qual a intensidade a que os vírus estão a ser libertados por uma pessoa, tenho de ver que caudal tenho de meter para garantir que a concentração está abaixo daquele valor.
Mas não estando as escolas preparadas para isto...
Há algumas que estão e outras que não. Temos realidades muito diferentes, temos escolas que foram objeto de remodelação da Parque Escolar, e parte dessas até admito que tenham o sistema de ventilação sobredimensionado, o que nestas condições não é mau, mas pesa na fatura de energia. O que faria sentido era haver algum investimento para ter alguma forma de verificação da qualidade do ar. E uma forma simples de o fazer é, por exemplo, ter uma medição de dióxido de carbono dentro da sala.
Mas não dá para medir a concentração do vírus...?
Dá para medir até que ponto o ar está a ser renovado. Imaginemos que temos uma sala de aula com alunos universitários. Por uma questão de simplificação, porque a taxa de emissão depende do tamanho das pessoas, temos uma sala com 20 alunos. As pessoas com corpulência anormal emitem 36 gramas de CO2 por hora, com atividade de quem está numa sala de aulas, se for num ginásio podem multiplicar este valor várias vezes. Sabendo eu quantas pessoas tenho na sala e qual é a emissão a partir dessas pessoas, o valor com que vou ficar dentro da sala depende da taxa de renovação do ar. A legislação portuguesa define que precisamos de cerca de 24 metros cúbicos por hora por pessoa para adultos com atividade sedentária e, com esse caudal, eu sei que a concentração de CO2 não vai ultrapassar os 1200 PPM (partes por milhão). A partir do valor da concentração que tenho na sala, sei o caudal de ar novo que tenho. Sei até que ponto tenho uma boa qualidade. E se tiver boa qualidade do ar estou a diluir o vírus na sala de aula, mesmo que haja carga viral ela estará a ser diminuída. Quando diminuo a concentração, tenho menos probabilidades de que as pessoas fiquem infetadas.
O uso de máscaras na sala de aula não é suficiente?
É uma grande vantagem. Há três formas de transmissão aérea do vírus, o chamado modo de transmissão por contacto, transmissão pelas gotículas e transmissão pelos aerossóis. Estes modos estão indexados a gotículas de tamanhos diferentes - as gotículas que tenham dimensão acima de 50 mícrons [um mícron equivale à milésima parte do milímetro] são as responsáveis pelo modo de contacto, entre 10 e 50 mícrons são as chamadas gotículas que saem da boca de uma pessoa e vai para o nariz da pessoa que vai ficar contaminada. E depois temos os chamados aerossóis, que são as gotículas mais pequenas - têm muito pouco volume e rapidamente perdem a fase líquida e os vírus ficam em suspensão. E estas partículas mais pequenas podem ficar em suspensão durante horas.
Quantas horas?
É como quando na nossa casa temos a luz a entrar por uma janela e conseguimos ver o pó, as partículas mais pequenas podem andar no ar durante um dia, ou mais. É o caso dos aerossóis. Quanto mais pequenas forem as partículas mais podem permanecer em suspensão. O vírus tem uma dimensão tipicamente de 0,1 mícron, significa que se colocarmos os vírus em fila, alinhados, para ter uma dimensão de um milímetro precisamos de dez mil vírus. Partículas desta dimensão podem estar a voar nos nossos edifícios durante dias. O que acontece em relação às máscaras é que praticamente anulam os dois primeiros modos de transmissão, o modo de contacto e o modo das gotas. Porquê? Porque as partículas de maior dimensão não passam através da máscara. Em relação ao terceiro modo, a quantidade de aerossóis é reduzida para cerca de um quarto ou um quinto - quando uma pessoa espirra, o ar escapa pelas frestas entre a máscara e a cara. Mas do lado recetor também é anulado cerca de um quarto ou um quinto. Se o emissor e o recetor estiverem a usar a máscara, a probabilidade, a dose, que é aquilo que é importante, é logo dividida por 20.
Já defendeu o uso da máscara e da viseira, em conjunto.
A viseira complementa. Porque as partículas mais pequenas, que são as que ficam em suspensão, batem na viseira e não passam.
Mas não é viável numa sala de aula...
Defendo para as pessoas que estão sujeitas a concentrações altas, alguém que está num sítio público, hospitais, zonas onde a carga viral é elevada.
Importante seria pelo menos um equipamento que medisse a qualidade do ar nas escolas...
Por um lado, ter as pessoas a usar máscara, porque praticamente anulamos dois modos de transmissão e reduzimos o terceiro. Relativamente aos aerossóis não há distância de segurança. O que podemos fazer é tentar diminuir a concentração daquilo que ficou no ar e para isso temos de ventilar. Quanto é que devemos ventilar? Só conseguimos tratar se for uma metodologia que vá de alguma forma abarcar todas as situações possíveis e se definirmos que devemos ventilar de maneira a que a concentração de CO2 não ultrapasse os 1000 PPM.
Mas há também a ventilação natural...
O problema é que a ventilação natural pode não chegar, quando em termos de espaço a ocupação é mais elevada. Além disso, é pouco controlada, depende de se está vento ou não, se há correntes de ar de origem térmica, etc... Podemos recomendar aos diretores de escola para terem - até pode nem ser nas salas todas - sensores de CO2 e para se habituarem a usar as salas abrindo portas e janelas, para que a concentração não atinja valores perigosos. É típico nas nossas salas de aula, quando as portas e as janelas estão fechadas, termos concentrações de 2500/3000 PPM para o CO2, e isso já começa a ser perigoso. É habitual nas escolas e em alguns meios de transporte, o que dá aquela sensação de ar pesado.
Há escolas onde os alunos têm de levar mantas por causa do frio. Abrir portas e janelas no inverno...
Gastamos dinheiro em tanta coisa, porque não pensamos em investir em sistemas de aquecimento para as escolas? A produtividade das tarefas intelectuais está diretamente relacionada com a qualidade dos ambientes. Quando temos os alunos nas escolas com muito más condições ambientais estamos a prejudicar o processo de aprendizagem deles. Ao fim do ano, o que nos fica mais caro?
Não é só a questão da edução, é também da saúde...
São as duas coisas. Noutros países, com climas muito mais frios do que o nosso, conseguem ter condições de conforto nas escolas. Se calhar, é preciso que a reabilitação das escolas, em vez de obras faraónicas, seja um programa racional.
A medição da qualidade do ar afastaria, por exemplo, a necessidade de reduzir o tempo das aulas?
Reduzir o tempo das aulas tem algum efeito. Imaginemos que entro com os meus alunos numa sala de aula às nove da manhã. A concentração que lá temos dos poluentes é igual à concentração no exterior, mas depois a concentração vai começar a subir com uma curva que atinge um valor constante, o chamado valor assintótico. O tempo que demoro a atingir esse valor depende da taxa de renovação de ar. Se interrompermos a aula antes de termos atingido esse valor, significa que os máximos de concentração que vai atingir também não são tão elevados.