A solo, nas diversas parcerias em que participa ou com os seus Orelha Negra, Samuel Mira veste com orgulho duas camisolas, a do hip hop e a de Chelas, bairro onde nasceu há 39 anos..Dos primeiros anos Sam the Kid combateu a timidez, habituou-se a que aspirantes a rappers lhe fossem bater à porta e aos pedidos de ajuda para discos alheios. Entre a produção e as rimas, diz que são sempre os seus projetos a solo que ficam para trás, mas garante que tem o segundo disco instrumental quase pronto e que um dia lançará o sucessor de Pratica(mente), o seu disco de maior sucesso, que planeia reeditar em vinil, mas sem excessos. "Não gosto que me cobrem mais por serem edições raras, com extras, e não vou fazer isso. Quero é que as pessoas tenham acesso à minha música", diz..Sobre Chelas, o seu bairro de sempre, irrita-se quando percebe que o estão a rebatizar de Marvila e a mudar os nomes às zonas historicamente conhecidas por letras e não se escusa a comentar os recentes acontecimentos no bairro da Jamaica. "Eles têm pistolas, nós temos telemóveis, mas devemos sempre questionar a veracidade do que estamos a ver, quando começa e acaba o filme e sobretudo dos media que os estão a mostrar", recomenda antes de deixar claro que é contra generalizações. "A polícia é necessária e não podemos entrar em generalizações como os que acham que todos os blacks são bandidos. Temos de ser superiores e dizer-lhes: tu és mau, uma vergonha para os teus colegas", diz..Uma pergunta que se impõe. Demorou dez anos para lançar um disco novo, porquê? Não há desculpa possível. A realidade é que eu tento ser produtivo diariamente e continuo a sê-lo, a trabalhar com imensa gente, seja mais à superfície ou mais underground, e isso faz que me sinta satisfeito comigo. Essas coisas são sempre a minha prioridade e os projetos pessoais acabam por ser feitos de forma mais relaxada, sem deadlines. É assim que gosto de trabalhar. Aliás, na minha música Sendo Assim está lá - a cena sai sem pressões..E há algum plano para juntar todos os músicos que entram no disco num concerto? Eu não tinha pensado nisso porque achei que teria de vir de mim essa iniciativa, mas fizeram-me essa proposta. Ainda não posso dizer concretamente para que sítio, mas será num palco grande e vai acontecer só uma vez..Para a compilação, foi propositada a escolha de músicos menos conhecidos? Tenho andado aqui a matutar numa ideia de fazer uma mais escolhida a dedo. Esta foi feita ao sabor do vento, com pessoas que tinham beats meus ou que vinham abordar-me para lhes produzir um tema. A essas dizia: "OK, toma um e agora faz um para mim, toma um beat para o teu álbum, mas entretanto fazes um tema também para a minha compilação." Por exemplo, o meu primeiro encontro com o Boss AC para fazer a música foi em 2014, gravámos em 2015 e a música só saiu em 2016. O álbum foi saindo em tempo real na plataforma, as músicas uma a uma pela ordem que estão no álbum..Já depois do disco, lançou mais uma música com o Mundo Segundo, de onde vem esta ligação? Do final dos anos 1990 quando nos conhecemos num concerto dos Mind da Gap. Depois ele organizava umas festas de hip hop em Gaia e convidou-me para atuar, pela primeira vez, no Porto. Depois comecei a ir até casa dele que funcionava como a minha em Chelas, um ponto de encontro para a comunidade. Nessa altura gravámos as primeiras músicas, mas essas nunca ninguém ouviu, e mais tarde gravámos em casa do Cruzfader, outras duas que nunca saíram. Nestes últimos cinco anos a ligação cresceu porque o desafiei para fazermos umas battles de instrumentais em que acabávamos por cantar os dois. De repente os promotores já compravam o espetáculo instrumental na esperança de que nós cantássemos e foi evoluindo....E vai ser editado em disco? Isto não teve um pensamento estratégico ou já teríamos data para o disco. Por outro lado, se já o tivéssemos feito já estavam a pedir-nos outro. Assim também é melhor para prender a atenção. Falo por mim, se apanho um disco completo acabo por passar por ele na diagonal..Impressão minha ou não valoriza muito o formato de disco? Valorizo pois. Enquanto consumidor gosto de ter tudo à mão de semear, mas não faço questão em ter o formato físico. É a música que me interessa, mas claro que gosto de ter a minha música em formato físico. Os discos que tenho guardo com todo o carinho..E tem algum plano para reeditar a discografia? Tenho. Os discos já não estão à venda e os que aparecem estão a preços absurdos, coisa com que não concordo. Não só porque quem quer ouvir a minha música não merece como nesse caso o dinheiro não vem para quem o merece, eu [risos]. Vou banalizar os discos para não ser como aquelas reedições que custam uma fortuna. Não gosto que me cobrem mais por serem edições raras, com extras, e não vou fazer isso. Quero é que as pessoas tenham acesso à minha música..E há prazos definidos? Será feito de uma forma coordenada, um de cada vez, a começar pelo Pratica(mente) que será lançado em vinil. Ao mesmo tempo vou colocar extras na minha plataforma, com vídeos, making ofs, inéditos. É a mesma lógica que apliquei à minha loja, não a enchi imediatamente com tudo o que tenho. Não percebo nada de culinária, mas é como os chefs que dizem que 30 pratos na ementa geram confusão e que mais vale ter uma ementa curta, mas mesmo boa..Na sua discografia há um ponto alto óbvio, o Pratica(mente). Não sentes necessidade de fazer outro disco completamente a solo? Sinto, claro que sinto essa necessidade e essa vontade, mas se eu próprio ainda não comecei, imagina... Eu tenho sempre aquela esperança de que apareça um dia esse fluxo criativo. Estou sempre a fazer mil coisas, mas tenho aquela esperança de que isso seja uma coisa menos morosa, mas isto sou quase eu a tentar iludir-me..Estes projetos de colaborações, sente-os como seus tanto quanto os discos a solo? São coisas diferentes. Também não olho para o Beats Vol 1 da mesma maneira que olho para o Pratica(mente). O Beats Vol 1 é um álbum instrumental, o Pratica(mente) é um álbum enquanto rapper e produtor e este último um álbum enquanto produtor a fazer uma compilação com vários rappers. Tal como o meu próximo projeto, que se chama Classe Crua, é outra coisa diferente - sou eu a produzir um álbum inteiro de um grupo do qual faço parte. Ou seja, tens a linha dos meus álbuns de rimas, Entre(tanto), Sobre(tudo), Pratica(mente), depois tens o Beats Vol 1 e irá haver o Beats Vol 2, e tens este, a terceira via, que é o MeChelas e que poderá ter uma continuação..O sucesso do Pratica(mente) não deixou a fasquia demasiado alta, sentes essa pressão? Continuo a receber feedback de que foi um disco que marcou tanto na altura como até tem vindo a marcar novas gerações que nem o consumiram na época. Claro que tenho isso em consideração, mas da mesma forma também há esse peso com o Beats Vol 1. É o álbum favorito de muita gente e também sinto essa responsabilidade. A diferença é que do Beats Vol 1 para o Vol 2, que já tenho na gaveta há muito tempo, sinto uma energia descontraída. Foi como do Sobre(tudo) para o Pratica(mente). Há muita gente que gosta do Sobre(tudo), mas eu estava naquela: "Vocês não estão a ver, o próximo vai ser muito melhor, sinto que não vou desiludi-vosr." Tens aquela energia, não estás nervoso, estás confiante de que é um trabalho de qualidade acima do anterior. O Beats Vol 2 sendo instrumental é mais subjetivo dizer-se se é acima ou não, também já passou muito tempo, mas abaixo não é..No seu caso, há outro caminho que não dá para ignorar, os Orelha Negra. Ainda podias ter outro, estou também a fazer um trabalho que sou eu a fazer um álbum em dueto com outro rapper também [risos]. Acho que isso também me faz crescer, aprender, e essa variedade na minha discografia completa-me. É aquela cena à Forrest Gump de chegares ao fim da vida e pingue-pongue? Já joguei. Andaste na tropa? Estive na tropa. É isso que me completa e aqui só me estou a restringir à música..Quando começou, o hip hop era uma coisa de nicho. Alguma vez imaginava que ia chegar ao CCB, ao Coliseu e a fechar festivais em Lisboa? Havia essa vontade, esse desejo e essa ambição de, um dia, acontecer. Felizmente tem sido assim. Estive presente na primeira vez que o Boss AC foi ao Coliseu, por exemplo, e nessa altura não era nada comum. Hoje, começa a ser cada vez mais banal vermos coisas grandes em que o hip hop está envolvido..Tem sido sempre a crescer e, de repente, há um concerto no [Pavilhão] Atlântico só com rappers nacionais. Percebeu quando é que começaram a saltar para as salas grandes? Uma pessoa quando está por dentro está mesmo a acompanhar a subida degrauzinho em degrauzinho. Se me vires todos os dias, não vais reparar se emagreci ou engordei; se deixares de me ver durante três ou quatro meses vais dizer que estou mais magro. À distância a observação é mais fácil de fazer. Aqui é um bocado a mesma cena, é difícil apontar um momento porque na realidade foram vários. Veio um e abriu uma porta, depois vieram outros que abriram outra ... Ao longo destes vinte e tal anos que um gajo já tem por aqui, ouvi imensas vezes a palavra boom..Há mais identificação do público português com o hip hop do que com os outros géneros? Não há rappers portugueses a cantar em inglês, por exemplo. Mas isso foi a celebração que eu já anunciava no Poetas de Karaoke. Quando andei na escola, no princípio dos anos 1990, cool era o rock, o gajo que estava ali com a guitarra a tocar Guns and Roses ou AC/DC. O resto era uma minoria, éramos três ou quatro gatos-pingados. Depois, quando isto começou a acontecer em 2006, apesar de já não frequentar a escola, começo a perceber que para os miúdos na escola já não era o rock, era o hip hop e o fator determinante tinha sido a língua. Se o rap nacional fosse cantado em inglês não tinha o mesmo poder, não chegaria onde chegou e onde continua a chegar. Aí, o rock dormiu um bocado. Eu, sinceramente, até gostaria que houvesse uma nova força, novas bandas de rock a tentar fazer frente, concorrência a nível de popularidade..Dos seus anos no liceu para agora, o panorama mudou muito... Inverteu tudo. Hoje o pessoal só quer hip hop. É ao contrário, andam lá três gajos do rock que são os diferentes, os alternativos, os gajos que têm a guitarra [risos]..No último disco tem uma música, A História, que aborda as duas facetas do hip hop, o mainstream e o mais interventivo. Com qual delas se identifica mais? Não tenho uma favorita, a cena é mesmo gostar de todas, mesmo quando é um gajo a falar de cenas gangsters ou algumas cenas fúteis. Há muita música, mesmo dentro do rap, que é um bocado fútil, a história do gajo que não tinha dinheiro e agora só fala daquilo ao seu redor. Às vezes as pessoas dizem: "Então o gajo agora só fala de dinheiro." Falam do que têm ao seu redor, mas podem ter mais imaginação. Por exemplo, o Eminem tem muito dinheiro e não não fala de ostentação. Gosto de liricistas, com flows complexos e também me deixo levar pela avaliação técnica. Dentro do hip hop, gosto de me considerar versátil. Tenho uma obsessão por estar sempre a consumir tudo o que se passa e às vezes até tenho dificuldade em acompanhar..Qual foi o último disco que o deixou assim de boca aberta? Há muito tempo que não sinto uma cena fresh, uma cena que me deixe maluco. Para ser sincero, isso já não me acontece há algum tempo. Talvez com o último álbum do Dr. Dre, o Compton, que, apesar de não ser um álbum que fique para a história, tem soluções musicais bastante interessantes..Engraçado falar disso, porque ele também fez mais ou menos a mesma coisa, um disco dele e, a seguir, uma compilação... Tens razão, mas se revisitares os álbuns do Dr. Dre vês que têm sempre um grande elenco. Nem é conhecido por ser rapper, é produtor e até é um bom intérprete, mas nem escreve as rimas que canta..Não fugindo ao Dre, no primeiro disco ele apresenta o Snoop Dog e no segundo o Eminem. Já imaginou apresentar um rapper e acertar assim? Engraçado porque fiz essa mesma observação. Entretanto o Kendrick [Lamar] já tinha sido apresentado, mas o Anderson Paak é revelado lá. A primeira vez que se ouve Anderson Paak numa cena mainstream é naquele disco. Neste momento não está a um nível de popularidade do Eminem, mas está a caminhar muito bem. Mas não gosto de ter esses méritos de descobrir alguém, são colaborações que acontecem. Mas se fores a ver, a primeira vez que alguém ouviu o Regula, por exemplo, foi no meu segundo álbum, o Sobre(tudo), em 2002..Sente-se mais confortável como produtor ou como rapper? Nos dois, apesar de enquanto produtor estar, neste momento, numa fase bastante prolífica e, realmente, quase tardia. Faço beats para imensa gente..E no primeiro disco já se queixa de os roubarem... Antigamente não produzia, passava beats às pessoas e isso é diferente. "Samuel passa-me um beat" e eu depois só via o resultado final quando o álbum saía. Isso não é produzir, isso é passar uma ideia a alguém. Produzir um tema é trabalho conjunto, com dois a trabalhar para um melhor produto final, essa é a grande diferença entre um produtor e um beat maker. Neste momento, sinto-me cada vez melhor produtor..Nos primeiros discos falava do quarto mágico. Ainda é o mesmo ou já mudou de quarto para fazer a música? É o mesmo. Tenho outra casa, mas o quarto mágico é onde eu faço a música. Vou para lá todos os dias..Lembra-se do primeiro disco de hip hop que lhe agradou, da primeira música? Souls of Mischief - 93 Til infinity é o nome da música. Já estava bem familiarizado com músicas de rap, mas essa foi um convite para a cultura, para saber mais. Se calhar já tinha ouvido rap ou outras músicas que envolviam rap, mas essa foi diferente..Desde o início que a ligação a Chelas é evidente nas músicas. Não sente vontade de contar outras coisas? Há uma camisola que está vestida, que é a do hip hop, e essa não muda. Sou fiel a Chelas como sou ao hip hop, são essas as camisolas que visto..Não era um bairro de boa fama. Já teve de lidar com preconceitos por ser daqui? Para que vou estar a dizer isso quando há pessoas que sofrem mais preconceitos? Não me vou queixar-me de um táxi ou outro que não me levou....Não estou a falar desse tipo de preconceito. Estou a falar do preconceito de ser artisticamente reconhecido. É da primeira geração de rappers de Chelas e depois ainda havia o circuito tradicional da música, do tradicional rock. O facto de ser de Chelas nunca foi um problema, mais difícil foi ver o hip hop ser considerado música ou arte. Aí sim, no que diz respeito ao pessoal da música....Volta não volta ouve-se uma boca desagradável ao hip hop... Atualmente, acho que já está diferente, até porque já há pessoal cota - eu já sou quase cota também - de quem já consigo perceber um certo feedback. Vou ao Twitter e apanho uma filha a dizer que o pai está a ouvir Sam the Kid!?.Já é música para pais? Sem dúvida. Até às vezes há aquela cena do "nem gosto muito de rap, mas vejo que até tem umas boas letras". Isso para mim é bom. Tu nasceste com outros géneros e depois não és obrigado a abraçar as novas tendências que apareceram quando já tinhas 50 anos, não é? Mas se respeitas e dizes "Este miúdo tem talento, não consumo, não é a minha cena", para mim chega..E já apareceram fãs em sítios onde não esperava? Imensas vezes, tantas, tantas, tantas. De professores que me dizem que falam de mim nas aulas, até à polícia que a fazer uma rusga a uns miúdos que estavam num grupo - eu até estava a dar uma entrevista - e vem um ter comigo. De todas as camadas da sociedade, mulheres na noite a políticos, já tive feedback. Para não falar de faixas etárias, de pessoas mais velhas do que eu, que já tenho 39 anos, que consomem a minha cena, compram, fazem coleção..Nos primeiros anos dava poucas entrevistas e a ideia que dava ao ouvir é que estava bem no seu cantinho, literalmente no quarto mágico. Adaptou-se bem a essa coisa de ser reconhecido na rua e de lhe pedirem autógrafos? Adaptei-me bem, com o tempo..Custou? Foi difícil? Não. Ponho mesmo as pessoas à vontade. Agora, para o que não tenho paciência e evito um bocado são pessoas bêbedas. Estás a comunicar com elas e elas nem sequer te estão a ouvir, esquece... Não quer dizer que seja rude, eu tenho bastante paciência, mas já não tenho para essas pessoas. Já tive, mas chega. Já me aconteceram cenas de todo o género, de me dizerem rimas ao ouvido, não do tipo sexo, drogas e rock'n'roll, mas mais engraçadas..Mas acontece aparecer alguém na rua a dizer "Olha aqui a minha rima" e, queira ou não, tem de a ouvir? Já não tenho paciência. Lembro-me, por exemplo, de estar a dormir e a minha mãe ir acordar-me porque estava alguém à porta. E eu de pijama, cabelos soltos, a parecer o Jesus Christ, e estar à minha porta, às nove horas da manhã, um gajo a rimar. Volta e meia ainda acontece, uma ou duas vezes por ano, pessoas vêm tocar à campainha. Famílias que vêm de longe, o filho, a mãe, que dizem que vieram de Coimbra para tocar à minha campainha..Vem gente de Coimbra ter consigo a Chelas? Como o encontram? Exatamente. Até do Algarve. A última que aconteceu, ainda em 2018, era um pai e mais quatro jovens. Deve ter sido um programa de domingo para eles, vieram ali de Vila Franca. Se tiverem atenção, nas minhas músicas digo onde moro. E na verdade basta saíres ali da estação do metro e perguntares que toda a gente sabe. Se fores fã, mesmo fã, há uma música em que digo a rua, outra em que digo o lote e uma música em que digo o número da porta. Tens é de ouvir as várias músicas..As origens do hip hop aumentam-lhe a responsabilidade de dizer alguma coisa, de ter uma mensagem, uma vez que nasce em bairros pobres, problemáticos, os primeiros anos na América são duros, acha que isso aumenta o peso de um rapper que queira ser respeitado para dizer alguma coisa de construtivo? Essa cena de associar o hip hop à reivindicação e à mensagem não é a primeira fase do hip hop. Se quiseres ser fiel às raízes, a primeira fase é de festa, o rapper aparece como animador, é quase um anfitrião. Essa fase é posterior, só aparece depois com Grandmaster Flash, nos anos 1980, em que as pessoas seguem muito essa cena. Depois, houve grupos fundamentais para usar o hip hop como veículo para dizeres alguma coisa. Revejo-me, só não me limito a isso..A política diz-lhe alguma coisa? Hoje já vejo a palavra política de outra forma. Antigamente, até dizia que não fazia música sobre política, pensava que política era falar sobre os políticos, falar sobre a Assembleia. Política pode ser uma coisa mais ampla, pode ser tudo o que acontece na sociedade, o que achas que está bem, o que achas que está mal. Agora, até fiquei curioso de ver a definição da palavra política. Não é só pensares em políticos, é pensar qual é a tua política, qual é a tua maneira de ver as coisas..Mas no sentido extraparlamento, extrapolíticos, é atento à política da rua, da vida do dia-a-dia, dos impostos, do preço da gasolina? Sou atento e gosto de a levar para a minha música. Há poucas coisas que me tiram do sério, mas quando acontece faço músicas. Tenho uma que ainda não saiu e que se chama Senhor Ministro e fiz outra mesmo a ver com uma cena aqui de Chelas, com Marvila. Porque é que as placas de Chelas estão todas tapadas com Marvila? Parece que é para apagar o nome de Chelas. Há muitos anos que isto tem vindo a acontecer. Primeiro foram os nomes dos bairros, era a Zona I, J, L, M, N1 e N2, depois decidiram mudar. Este agora é o bairro das Amendoeiras, a Zona J é o bairro do Condado, depois há o bairro do não sei quê, o bairro do não sei que mais e o único que pegou mais ou menos foi o bairro do Armador. Uma vez, estava numa escola a fazer uma palestra, estava lá o presidente da junta e eu confrontei-o. Perguntei-lhe porque que tinham mudado o nome das zonas, se tinha sido por causa do filme, e ele confirmou que sim. Aí disse-lhe: "Você vai mudar o nome por causa de um filme? Pensa que a solução para limpar um suposto nome sujo é criar um nome novo? Acha que é solução?" E é isso que eles estão a tentar fazer. Marvila é a freguesia a que nós pertencemos, a marcha é de Marvila, mas a estação do metro é Chelas [risos]. Há que estar atento a isto. Porquê? A brincar a brincar, a Musgueira já desapareceu, já só se diz Alta de Lisboa, e na volta ainda existe lá o Clube Águias da Musgueira. Querem mudar porque são nomes que estão associados a coisas que acham negativas. Do que se esquecem é de que a solução não é essa, a solução não é criar um nome novo para um velho supostamente sujo. A solução é associar as coisas boas que há nesse sítio ao nome de sempre. Porque se acontecer algo de mal, os media não vão pegar no nome novo. O Quaresma, se for roubado na Zona J de Chelas, a notícia vai ser esta, não vai ser o Quaresma foi roubado no bairro do Condado. Para as coisas más, os media vão pegar no nome pesado, foi isso que aconteceu quando o Quaresma foi roubado e já se chamava bairro do Condado..Está preparado para o presidente da junta chegar ao pé de si e anunciar que o liceu passa a Liceu Sam the Kid? Não [risos]..Mas já há um auditório. Como vê isso? Dizia que se devia associar os bairros com um nome pesado às coisas boas. Já há um auditório, está bom [risos]. O liceu tem de ser com nomes de pessoas com feitos mais fortes ou então com uma distância maior. Acho que não ia conseguir lidar com isso, ter um liceu com o meu nome. Os nomes das pessoas dos liceus costumam ser o quê? Por acaso há poetas, há o Fernando Pessoa, o Camões, há uma data deles. Os pavilhões são mais ligados ao desporto, há o pavilhão Rosa Mota, mas não há o liceu Rosa Mota..Como viu os incidentes no Jamaica? Não é novidade. Estamos numa fase em que os telemóveis filmam e servem de testemunhas. Eles têm pistolas, nós temos telemóveis, mas devemos sempre questionar a veracidade do que estamos a ver, quando começa e acaba o filme e sobretudo dos media que estão a mostrá-los. Não tenho dúvidas de que há racismo em Portugal e o caso em questão até pode não envolver essa palavra. Lembro-me do caso do meu amigo Snake, a polícia viu-o. Se no lugar dele estivesse uma mulher branca, se calhar não tinham disparado. A polícia é necessária e não podemos entrar em generalizações como os que acham que todos os blacks são bandidos. Temos de ser superiores e dizer-lhes: tu és mau, uma vergonha para os teus colegas..Branco em meio musical tradicional negro, alguma vez se sentiu discriminado? Em miúdo, numa matiné no Crazy Nights, fui numa rusga e nunca mais me esqueci de ouvir o polícia dizer: '"Tenho aqui dez indivíduos, infelizmente nenhum preto." Em miúdo tinha a esperança de que isto tivesse mudado, olhava para os preconceitos da geração dos nossos pais como fruto de não terem crescido numa sociedade multicultural. Hoje olho para as caixas de comentários e perco a esperança toda. Há comentários de miúdos de 13 ou 14 anos que ou são perfis falsos ou são miúdos educados na mesma cultura das gerações anteriores. No meu caso, tive um episódio mas é tão pequeno que se torna insignificante quando comparado com amigos que mal entram em shoppings são olhados de lado. Se já fui barrado por taxistas por querer ir para Chelas? Já, e isso é preconceito, mas não é o meu dia-a-dia.