"Se o Estado tiver de dar tanto dinheiro por uma indemnização vai à falência em pouco tempo", diz MP
"Trata-se de uma situação inusitada." Esta frase, referindo-se à morte de Ihor Homeniuk sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a 12 de março de 2020, foi repetida algumas vezes pelo procurador que representa o Ministério Público (MP) no Tribunal da Relação na audiência, esta quarta-feira, na qual foram apresentados oralmente os recursos dos três inspetores do SEF condenados, assim como da família do cidadão ucraniano e do próprio MP, .
Sublinhando repetidamente que não foi ele mas a sua colega Leonor Machado, autora do recurso "de 140 páginas" em que se pede o aumento das penas de dois dos arguidos (Luís Silva e Duarte Laja) de nove para 11 anos, a acompanhar o julgamento deste "caso importante, com impacto nacional e nos media", o procurador Fernando Ferreira Lino afastou-se desse pedido, considerando-o "um preciosismo" e dizendo achar "a medida da pena bem doseada". E terminou declarando: "Quanto à indemnização, se o Estado português tiver de dar tanto dinheiro por uma indemnização vai à falência em pouco tempo."
Recorde-se que a indemnização à família de Ihor Homeniuk foi arbitrada pela Provedora de Justiça em cerca de 800 mil euros e já foi paga pelo SEF.
José Gaspar Schwalbach, que representa a viúva de Ihor no processo e conduziu o pedido de indemnização ao Estado português, confessou ao DN o seu espanto com as declarações do MP. "O valor arbitrado não se encontra em causa nestes recursos. Mas não podemos concordar com o senhor procurador, já que esse valor foi arbitrado com base em critérios objetivos que já foram aplicados no caso dos incêndios de Pedrógão. Por outro lado, nunca poderá ser critério a solubilidade do Estado português, uma vez que não se pode colocar na mesma balança a justiça e a capacidade financeira."
Igualmente surpreendente foi a acusação feita ao tribunal recorrido por Ricardo Serrano Vieira, advogado do inspetor Duarte Laja, que como Luís Silva foi condenado a nove anos de prisão pelo crime de ofensas à integridade física graves, qualificadas e agravadas pelo resultado morte (o terceiro inspetor, Bruno Sousa, teve uma condenação mais leve, a sete anos). Nas suas alegações, o causídico afiançou que o coletivo da primeira instância, presidido pelo juiz Rui Coelho, apressou o julgamento por pressão do Conselho Superior de Magistratura (CSM) porque "o processo tinha de ser acabado antes da Páscoa". Mas não se limita a dizer que tal teria levado o tribunal que condenou o seu constituinte a prescindir de produção de alguma prova - por exemplo da audição de peritas em medicina legal apresentadas pela defesa. Acusa-o mesmo de recusa da descoberta da verdade: "Os juízes não queriam que se fizessem mais perguntas ao médico [responsável pela autópsia] porque isso poria em causa a tese final.".
Serrano Vieira, que faz parte da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, não explicou em que consistiu a intervenção do CSM, órgão que superintende os juízes, nem o coletivo de desembargadoras, presidido por Conceição Gonçalves (coadjuvada por Ana Paramés e pela relatora Margarida Ramos de Almeida) lhe fez qualquer pergunta sobre essa matéria ou sobre as acusações que faz aos magistrados do tribunal inferior.
Foi precisamente das desembargadoras que surgiu a terceira surpresa, no final da audiência, pela voz da juíza relatora. Esta advertiu os advogados "da eventualidade de se vir a proceder neste acórdão a uma alteração jurídica da qualificação do crime" - algo que já ocorrera no julgamento na primeira instância, quando o coletivo de magistrados anunciou que ponderava alterar a qualificação jurídica da acusação, passando-a de homicídio qualificado para ofensas à integridade física graves qualificadas e agravadas pelo resultado. O que veio a ocorrer: os três arguidos foram condenados por esse crime.
Agora, o anúncio, que suscitou a Ricardo Sá Fernandes um aparte no final da audiência - "Esta nunca me tinha acontecido" -, foi de que as juízas ponderam manter a qualificação do crime de ofensa à integridade física grave, descrito no artigo 144º do Código Penal, mas baseando-o na alínea c - "quem ofender o corpo ou a saúde de uma pessoa de forma a provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente" - em vez daquela que foi adotada na primeira instância, a alínea d: "provocar-lhe perigo para a vida."
"É apenas uma eventualidade", frisou a desembargadora. Mas o aviso não só implica que agora os defensores têm de responder, no prazo de dez dias, a esta imputação, pedindo muito provavelmente para apresentar prova de modo a refutar esta acusação que nunca antes surgira no processo - a de que a ação dos inspetores causou a Ihor "uma doença" - como indicia que a tendência do coletivo deverá ser a de manter a condenação, embora diminuindo as penas (causar perigo para a vida é em princípio mais grave que provocar doença dolorosa). Ou seja, parece pouco provável, face a esta advertência, que o coletivo da Relação tencione absolver os arguidos.
Em causa nesta alteração da qualificação jurídica poderá estar o vencimento da posição dos três advogados de defesa no sentido de criar dúvida sobre se a morte de Ihor não sobreveio devido a uma cadeia de ações e omissões de várias pessoas, incluindo os arguidos, e não só a estes. Todos os defensores, nas suas alegações, frisaram o facto de terem sido extraídas certidões do acórdão que condenou os arguidos para acusação de várias testemunhas no processo, entre vigilantes da empresa Prestibel e outros inspetores (incluindo o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa), o que significa que a justiça vê mais responsáveis pelo que aconteceu a Ihor.
"O MP já sabia da atuação dos vigilantes quando fez a acusação, mas aquilo que são atos de tortura [refere-se ao confesso manietar de Ihor, várias vezes, com fita adesiva, pelos vigilantes] foi ignorado na acusação. Estas pessoas foram deliberadamente passadas à margem da atuação da justiça para poderem ir a julgamento testemunhar contra os três inspetores", indignou-se Serrano Vieira. E Sá Fernandes corroborou: "Os vigilantes foram a tribunal mentir para salvar a sua pele."
Outro argumento que poderá estar relacionado com a possível alteração da qualificação do crime é o esforço da defesa na descredibilização do resultado da autópsia.
Esta foi outra matéria na qual Maria Manuel Candal (advogada de Luís Silva) - sobretudo ela - mas também Sá Fernandes e Serrano Vieira muito insistiram, usando como trunfo o facto de o médico que levou a cabo o exame médico-legal, Carlos Durão, ter "chumbado" no exame da especialidade há cerca de mês e meio.
Maria Manuel Candal, que já durante o julgamento na primeira instância questionara a capacidade do médico para levar a cabo uma autópsia, frisando o facto de Durão não ter a especialidade, acusou-o agora de "violação das leges artis" (as regras da arte médica) e de violar o artigo do Código Deontológico dos Médicos que estabelece que "um médico não deve ultrapassar os limites das suas qualificações e competências."
Malgrado a gravidade destas acusações - que põem em causa o Instituto de Medicina Legal, ao serviço do qual Durão trabalha como médico forense desde 2008, aliás como muitos outros clínicos sem a especialidade de medicina legal - a advogada acabou por na sua argumentação admitir que Ihor morreu por asfixia mecânica, que é a causa de morte indicada na autópsia.
Esta, relembre-se, certifica que foi devido à combinação de fraturas nas costelas (devidas a agressões) e de estar muitas horas algemado de mãos atrás das costas e de barriga para baixo que Ihor morreu sufocado, por "asfixia mecânica"; Maria Manuel Candal declarou nas suas alegações que "quem colocou Ihor de barriga para baixo foram os vigilantes do turno da manhã - foi essa posição que causou a asfixia mecânica de Ihor". Essa intervenção, que afirma ter sido admitida pelos ditos vigilantes no julgamento, interrompe, no seu entender, "o nexo causal" entre a intervenção dos três inspetores e a morte do cidadão ucraniano, "pondo em causa a agravação do crime pelo resultado morte", decidida pelos juízes da primeira instância.
Significa isto que esta advogada já abandonou a tese que a morte se poderia ter devido a causas naturais, relacionadas com o facto de ser alcoólico e estar em abstinência - era afinal essa a conclusão das peritas forenses cujo relatório Candal e Sá Fernandes juntaram ao processo e que queriam ver ouvidas no julgamento - o que foi indeferido pelos juízes..
Já Sá Fernandes, defensor de Bruno Sousa - o arguido que viu a sua pena atenuada "por ser muito mais novo" e "ter menos experiência" que os outros dois, embora tenha apenas menos 18 meses que Luís Silva e antes de entrar no SEF tivesse estado oito anos na Polícia Marítima - admitiu que os três inspetores "talvez devessem ter sido mais vigilantes na desalgemagem [Ihor foi algemado por eles pouco depois das oito da manhã e às 16.45, quando foi encontrado moribundo, ainda estava algemado] e por aí ser responsáveis de alguma infração". Mas, contrapôs, "não houve prova direta nem indireta de que o agrediram com socos e pontapés. Foram identificados como assassinos do ucraniano quando não foram. O país espera que este assunto se arrume rapidamente com a condenação destes homens; o SEF foi extinto e foi tudo reformulado. E no meio disto tudo, para além, claro, da vítima principal, Ihor Homeniuk, que morreu e não devia ter morrido, há mais estas três vítimas silenciosas."
O DN contactou o gabinete da Provedora de Justiça, que não quis reagir às declarações do procurador do Ministério Público. Também Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, se escusou a comentar as acusações de Ricardo Serrano Vieira ao coletivo presidido pelo juiz Rui Coelho.