Gigantesco", "heroico" e "obrigatório" foram alguns dos adjetivos com que o documentário AmarElo - É tudo pra Ontem, da autoria de Emicida, foi recebido no Brasil, após a estreia na plataforma de streaming Netflix, a 8 de dezembro. O filme, realizado por Fred Ouro Preto, parte de um espetáculo do rapper no Theatro Municipal de São Paulo (um espaço construído por trabalhadores negros, mas cuja presença naquela sala foi durante décadas negada) para (re)escrever uma história escondida da historiografia oficial do Brasil: a dos afrodescendentes. "Nos vemos nos livros de história", despediu-se o artista do público, naquela, também ela histórica, noite. Porque, de facto, é de uma aula que se trata, como assinalaram alguns professores, elogiando o modo como aborda questões como a escravidão, a história do trabalho no Brasil, a realidade da periferia, o surgimento da cultura hip hop como "voz preta" e a ligação direta desta com o samba..Baseado no aclamado AmarElo, o álbum editado em 2019 e vencedor do Grammy latino de melhor disco de rock e música alternativa, É tudo pra Ontem apresenta um Emicida ao mesmo tempo protagonista e narrador de uma história coletiva que também é a sua - mas igualmente a nossa. E com isso transforma-se, de vez, em muito mais do que um "mero" artista musical, como bem o demonstra nesta entrevista ao DN, na qual assume um protagonismo e consciência de classe talvez só anteriormente conseguida por Gilberto Gil, com quem, aliás, gravou o recém-editado single É tudo pra Ontem, o tema de encerramento do documentário..Como é que esta pandemia o afetou, influenciou ou inspirou em termos artísticos? Não usaria muito a palavra inspiração neste contexto, porque tem sido uma travessia um pouco angustiante e desde há algum tempo que ando a tentar deslocar o centro da minha criação para a vida. Cada vez mais, através da minha obra, tento fazer que a vida aconteça, e, olhando para essa experiência sob um ponto de vista brasileiro, o que a pandemia fez foi evidenciar, de forma ainda mais gritante, quão cruéis e enormes são os abismos sociais existentes neste país. Já do ponto de vista profissional, faço parte de um setor, que foi o primeiro a ser suspenso e vai ser o último a ser restabelecido, porque ninguém vai querer ir a um concerto com as elevadas taxas de contágio que continuamos a ter. Nesse aspeto o Brasil foi muito irresponsável..YouTubeyoutubeFQ9hCN0ZYSg.Em que sentido? No sentido em que parte da população não praticou o isolamento social, também muito por culpa do caos plantado pelo Bolsonaro, que transformou o vírus numa questão política, como se o mesmo fosse uma invenção da esquerda. É de uma ignorância constrangedora, mas que vai custar a vida a milhares de pessoas. Muitas vezes ainda nos interrogamos como é que as fake news conseguem penetrar tão fundo na sociedade, mas isso diz muito sobre a psicologia humana, porque no final do dia as pessoas acreditam apenas no que querem acreditar. Agora imagina isso num ano em que as pessoas estão isoladas, em que as relações sociais, como as conhecíamos, foram suspensas. A única coisa que o capitalismo ainda não tinha alcançado eram as nossas relações sociais, aquele momento de respiro humano, de encontrar os amigos para tomar uma cerveja num sábado à noite. As pessoas sentem-se muito pressionadas e nesse ambiente de caos, que foi criado pelo governo federal, são levadas a acreditar no caminho mais simples. O seu documentário tem sido muito elogiado pelo modo como faz luz sobre a importância dos afrodescendentes na história e na cultura brasileiras..De facto, muitas pessoas têm-se referido ao documentário como uma grande aula. E era esse o objetivo? Na verdade, nós estivemos tão imersos na pesquisa, que não tínhamos a mínima noção do impacto que o filme iria ter. Nunca nos quisemos colocar nesse papel de professores e donos da verdade. Pelo contrário, apenas elaborámos um documentário, que julgávamos trazer algumas informações importantes, ligadas ao contexto do disco e que precisavam de funcionar de um modo incisivo, mas também convidativo, para levar as pessoas a levantar questões..Como quais? Por exemplo: se o Brasil já produziu tanta grandeza, como é que permitimos que a mediocridade nos sequestrasse? Essa é uma pergunta fundamental, e o que contamos no documentário são apenas fragmentos da história que foram roubados às pessoas, na versão oficial contada nos livros. Se tivéssemos tido acesso a tudo isso na escola, no nosso momento de formação, a nossa conceção sobre o que é o Brasil seria completamente diferente. E acredito que em Portugal exista uma relação semelhante com essa parte da história. O objetivo será talvez o de fazer as pessoas sentirem que podem sempre fazer mais e melhor pelo outro..É um pouco essa a sensação que fica no final, de facto... Vivemos momentos tão desafiadores, que por vezes parece que já não aguentamos mais nada, mas a verdade é que já vencemos desafios muito piores. A história da humanidade está cheia de tragédias, e hoje em dia vivemos mais uma, que acaba por ser potenciada pela ignorância. Veja-se o caso dos Estados Unidos, qual é a lógica do país mais robusto do mundo atravessar a pandemia de forma tão irresponsável? Não é um problema só nosso, é um desafio global..De resolução cada vez mais complicada... Num momento como este, é muito difícil ter-se uma opinião definitiva, que seja entendida como correta do ponto de vista coletivo, porque a toda a hora chegam camiões repletos de informação nova, à qual queremos ter acesso, para tomarmos uma posição fundamentada. E de certa forma esse conservadorismo crescente - embora ser conservador não seja necessariamente um defeito, porque todos nós o vamos ser um dia - acaba por ser uma resposta a isso. Se para nós, que lidamos com informação, já é tão difícil analisar toda essa novidade, imagina as pessoas que não têm tempo ou vontade para o fazer. No fundo, essas pessoas buscam dentro de si um momento em que se sentiam seguras, e daí essa memória confusa, a que as novas gerações já não têm acesso, de um tempo glorioso, como o da ditadura militar aqui no Brasil ou a do Salazar aí em Portugal, em que tudo era bom e seguro. Quando na verdade o que acontecia era que as pessoas não tinham informação, não sabiam o que acontecia. É por isso que muitas pessoas migram para esse saudosismo sem base. Tenho até um amigo que costuma dizer que a memória positiva que os mais velhos têm da ditadura é a do tempo em que eles ainda transavam [risos]..E há alguma solução para isso? Temos de nos apegar aos factos, porque opiniões cada um tem a sua, mas os factos não mudam..São então os factos que o inspiram na hora de criar? Já foi mais, hoje é essencialmente a emoção, porque quando falamos a um nível racional, através de ideias, corremos sempre um risco de nos desencontrarmos. É por isso que nestes últimos anos me tenho esforçado para intensificar as emoções nas minhas composições, porque estas não são entendidas de maneira dúbia. Como digo na primeira música do AmarElo, "um sorriso ainda é a única língua que todos entendem". Claro que todos queremos ter um ponto de partida, para poder fazer uma análise, e esse ponto de partida é o facto. Mas quando se quer defender uma narrativa baseada nisso, as possibilidades são também infinitas, o que também poder ser perigoso, porque no final o facto já nem interessa mais. Daí essa minha tentativa de intensificar a emoção, para através dessa comunhão conseguir atingir também um lado racional. É esse o meu grande desafio..E isso permite-lhe ser objetivo na análise da realidade? A arte não tem essa obrigação. São essas as dores e as delícias das nossas profissões. Eu posso lançar mão da poesia e o meu trabalho está feito, mas um jornalista, quando muito, apenas pode polvilhar a informação com alguma poesia, mas nunca pode deixar de ser objetivo. A provocação que a arte sugere é a de sairmos de dentro de nós e olharmos o mundo com outros olhos. Com base nesse superpoder, tento levar as pessoas numa viagem, para que depois regressem com outra perspetiva. No fundo, se calhar, é esse o valor do facto naquilo que faço.