Um dos efeitos mais perversos do poder do cinema americano nos mercados globais é o apagamento das suas próprias diferenças interiores. De facto, é dos EUA que continuam a surgir algumas das mais fascinantes propostas cinematográficas, plurais e contraditórias, mas o espectador médio tende a reduzir a produção americana à rotina mais ou menos ruidosa dos blockbusters.
Algo de semelhante se poderá dizer sobre a grande tradição russa que, agora, é tema deste notável ciclo "Do mudo à Perestroika". Uma visão maniqueísta, saturada de "política", em grande parte induzida pelo imaginário de esquerda, descreve tal tradição como uma espécie de emanação "natural" da Revolução de Outubro.
Acontece que também neste caso, mais do que nunca, importa lembrar que as relações entre contexto político e gestos artísticos nunca são lineares, muito menos maniqueístas. Em boa verdade, os filmes - lembremos o exemplo do genial Ivan, O Terrível, de Sergei Eisenstein - existem num permanente confronto dialético (palavra que passou a ser temida pela própria esquerda) que faz da história uma paisagem de incontornáveis, porventura insanáveis, convulsões e contradições.
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E se Eisenstein ou Dziga Vertov nos ajudam a pensar a política para além dos códigos da própria cena política, há cineastas como Elem Klimov (lembremos o prodigioso Adeus a Matiora) cuja visão do tecido social vem enriquecer as reflexões contemporâneas em torno de um realismo que não se entregue ao pitoresco televisivo.
Isto sem esquecer que através de outros, como Nikita Mikhalkov (Olhos Negros), reencontramos a mais nobre tradição "tchekhoviana". Em boa verdade, a nostalgia ensina-nos que esta é uma história que começa na arte da escrita, antes ainda de haver máquinas de filmar.