Ninguém marca mais golos em Portugal do que Mafalda Marujo. Joga no Amora, na II Divisão, e tem 65 golos marcados nesta época em todas as competições - é também a melhor marcadora de todos os campeonatos portugueses, entre homens e mulheres, com 46 golos. Não gosta de rótulos, mas é uma verdadeira mulher de armas. Mafalda é militar e divide os dias entre o trabalho no departamento financeiro de uma unidade do Exército em Queluz com os treinos de futebol na equipa da margem sul do Tejo. O caminho não foi fácil. No início, a sociedade estigmatizava as raparigas que jogavam à bola e a mãe não queria que ela fosse jogadora. Mas Mafalda ultrapassou cada obstáculo com determinação e um sorriso na cara até chegar ao topo. Foi campeã nacional, venceu uma Taça de Portugal e uma Supertaça e jogou na seleção nacional feminina..Começou na ginástica acrobática, entre exercícios nos trampolins, cambalhotas e piruetas. Dos 6 aos 13 anos, a vida dividia-se entre a escola e os treinos de ginástica, mas o apelo do som da bola a rolar na calçada foi-se tornando irresistível. "Quando estava em casa só queria ir para a rua jogar à bola, jogar à bola, jogar à bola. Aos 13 anos chateei-me com a ginástica e fui tentar jogar futebol no Ponte Frielas. Disseram-me que eu podia ficar e treinar, mas não competir pois não tinham equipa para a minha idade e eu disse não... Era e sou muito competitiva, treinar e ficar a ver as outras a jogar não, não era para mim", contou Mafalda ao DN, antes de um treino nesta semana no Amora..Adiado o sonho de jogar à bola, voltou à ginástica, mas vivia em constante conflito interior. Se por um lado a ginástica a seduzia pela ordem e pela disciplina, por outro sentia-se atraída pela confusão do futebol de rua. "Quando via os miúdos na rua a jogar chegava de mansinho, meio tímida a perguntar se podia jogar ou ficar à espera que me perguntassem. Depois o campo era meu e no fim toda a gente perguntava: "Mas quem é esta miúda, ela tem de jogar à bola a sério", contou, com um brilho nos olhos..O talento para a bola foi correndo de boca em boca e "por vezes eram os rapazes que iam tocar à campainha de casa" para lhe pedirem para ir jogar. Era a única rapariga do grupo e a mãe não achava muita piada à brincadeira. "Não gostava que eu jogasse à bola, mas hoje é a minha maior fã", diz Mafalda, percebendo o lado da mãe: "Era um meio tão masculino e o normal era ouvir que as meninas não jogam à bola." Mais tarde ajudou a mudar mentalidades. A começar pela mãe, que "foi aceitando que a filha jogasse à bola". Já o pai olhava para ela como o filho homem que não teve e acompanhava-a nos jogos. Ficava atrás da baliza e dava-lhe até algumas indicações..O futebol só entrou a sério na sua vida aos 18 anos. As regras da ginástica obrigavam-na a subir de escalão e a mudar de par, e isso ajudou-a a perceber que estava "cansada" da modalidade. O apelo do futebol voltou em força e voltou a bater à porta do Ponte Frielas. Era o clube mais próximo e aquele de onde saíam as melhores jogadoras nacionais na altura. "Só lá estive um ano, depois uma colega de equipa levou-me ao Escolas de futebol feminino de Setúbal, que estava na I Divisão, para fazer uns treinos, e acabei por ficar lá dois anos. Depois recebi uma proposta do Futebol Benfica [Fófó], não hesitei, aceitei e estive lá um ano [época 2013-14]", recordou ao DN, confessando que foi nessa altura que percebeu que podia fazer carreira no futebol de onze..O cenário de profissionalização que hoje se vive ainda não se punha em Portugal na altura. E, em 2014, Mafalda teve a oportunidade de ir jogar para fora, "uma experiência única que não imaginava ser possível". De repente alguém ofereceu-lhe dinheiro para jogar. Ela que recebia apenas ajudas de custo para pagar o combustível e pouco mais, foi para Itália com um contrato, casa e comida. Assinou pelo ASD Torres Calcio Femminile, da I Divisão Italiana, na Sardenha, clube que tinha história e tradição no futebol feminino italiano. Não jogou tanto como queria, mas "aprendeu muito". Mas o "sonho" durou pouco. Uma doença do pai obrigou-a regressar a Portugal e ao Fófó, onde foi campeã nacional e venceu uma Taça de Portugal e uma Supertaça..Foi na melhor fase da carreira que se questionou se dava para viver do futebol... e percebeu que não. A triste realidade levou-a a inscrever-se na tropa. Mais uma vez, acabou seduzida pela rigidez das regras e da disciplina, que a tinham levado à ginástica. Hoje é militar do Exército, mais concretamente sargento e com responsabilidades na contabilidade. Adquirir material e pagar faturas, seja da compra de armamento ou despesas várias do quartel, tudo passa por ela. Para tal contribuiu o facto de ser formada em Gestão. Houve alturas em que estudava, trabalhava e jogava futebol. "Só com muita determinação e muito querer é que isto é possível", desabafou, confessando que "não há nada que a tire do sério, nem adversárias"..13 golos num jogo e uma Taça no Fófó.Desde os tempos em que jogava na rua, a baliza sempre foi o seu foco: "Atrai-me fazer golos. Gosto de jogar, mas o mais bonito do futebol é o golo, é o que nos faz ganhar e dá a vitória... e se for eu a marcar, melhor." No caso de Mafalda, marca de todas as formas e feitios, até daqueles com nota artística, que já lhe valeram a alcunha de Ibra, em homenagem a Ibrahimovic, conhecido pelos golos acrobáticos. Fã do sueco do AC Milan, admite que já fez "algumas tentativas" para marcar um golo de bicicleta, mas ainda não acertou em cheio na bola....Para já, conta 65 golos em 21 jogos disputados em três competições: campeonato, Taça de Portugal e Taça da Associação de Futebol de Setúbal. É a melhor marcadora do campeonato da II Divisão com 46 golos e também da Taça de Portugal (11 golos, apesar de a equipa do Amora já ter sido eliminada). Está quase a cumprir o objetivo de chegar aos 50 golos no campeonato e "gostava" de passar os cem golos nesta época. Superar os 109 golos de Darlene (Benfica) no ano passado não é fácil, mas "é um desafio aliciante"..Apesar de gostar "imenso de fazer golos" e de "ficar frustrada se não marcar", a ponto de pensar que passou "ao lado do jogo", para Mafalda o golo tem de ter sempre um pressuposto coletivo. Para ela há o golo da vitória, o golo do empate e o golo que não serve para nada. Serve para contagem pessoal, mas não é isso que a move. "Ter 65 golos é ótimo porque estou a ajudar a equipa, esse é o objetivo. A emoção do golo muda. Por exemplo, marquei ao Benfica, mas não fez tanto sentido porque não ganhei. Apesar de ter sido bom para mim, perdemos. No último jogo com o Condeixa marquei dois e dei a vitória à equipa, já é um golo de uma grande emoção", explicou Mafalda, confessando que "nada se compara" ao golo que marcou na final da Taça de Portugal, a 28 de maio de 2016, no Jamor. Nesse dia, fez o 2-1 frente ao Valadares e deu o primeiro troféu da história ao Fófó: "É um golo que tem todo o significado, ganhei um troféu com um golo meu.".Houve um jogo em que marcou 13 golos. "Um absurdo", admite, lembrando que foi um jogo pesado para a equipa adversária, que perdeu por 31-0 (!). Um resultado que só foi possível porque o Amora "respeitou o adversário", apesar de goleadas dessas "não serem boas para o futebol", porque quem sofre tende a desanimar e não há competitividade..Com currículo mais do que suficiente para estar na I Liga, Mafalda preferiu ir jogar para a II Divisão e lutar para subir. "Não foi fácil tomar essa decisão. Fui seduzida por um projeto. Gosto de ganhar e para mim não fazia sentido continuar no Futebol Benfica e lutar pelo quarto lugar. Tive muita pressão para decidir e optei pelo Amora. Para mim não é um passo atrás, é a oportunidade de fazer história. O Amora luta para ser campeão da II Divisão e subir e eu gosto de ganhar", explicou a jogadora, que "sempre se preocupou" em "fazer alguma coisa de útil pela modalidade"..A jogar num regime semiprofissional, Mafalda tem ajudas de custo, mas não é isso que a leva a fazer dezenas de quilómetros só para treinar: "É o amor ao futebol. Adoro treinar e, portanto, quem me tira o treino tira-me tudo. Apesar de levar o futebol muito a sério, o treino é o meu escape para descarregar as energias e as frustrações do dia-a-dia, apesar de às vezes ainda sair do treino com mais frustrações.".A sargento vê "com muito bons olhos o futebol feminino evoluir a grande velocidade". Mas lamenta que os clubes da I Divisão estejam a investir menos do que os da II Divisão. E apesar de a entrada em cena de Benfica, Sporting e Sporting de Braga ser "muito boa" para a evolução da modalidade, é preciso não esquecer quem fez do futebol feminino o que é hoje e "ir com calma na contratação de atletas estrangeiras"..Com 28 anos e a esperança de poder jogar para lá dos 40, Mafalda gostava de dizer às jovens jogadoras que "não foi fácil chegar-se até aqui". "Quem vai ganhar com as mudanças são as novas gerações. Quando comecei tive de andar de clube em clube à procura das melhores condições, muitas vezes sem sítio para nos equiparmos ou tomarmos banho, e a jogar por um lanche e o dinheiro para o gasóleo do carro ou o dinheiro do passe. Elas hoje chegam e têm tudo. Infraestruturas preparadas e equipadas para elas chegarem, treinaram ou jogarem. Há relvados sintéticos em vez de pelados, balneários e até ordenados. No Amora até nutricionista temos. Eu para ter isso tive de emigrar. Hoje já não é preciso ir para fora, já há clubes que dão condições para se ser profissional em Portugal", revelou a jogadora do Amora, questionando onde chegariam hoje jogadoras com o talento de Carla Couto ou Edite Fernandes: "Seria como ter Messi e Cristiano Ronaldo no futebol feminino português."