Eis um filme que pretende cumprir uma tradição: aliar o peso do relato histórico com a fórmula do cinema de tribunal. Argentina, 1985, de Santiago Mitre, terá sido o título mais consensual da competição da Mostra La Bienalle de Veneza. Um êxito argentino com pernas para ser global e que esta semana chega à Prime Video..Trata-se efetivamente de um exemplo feliz de cruzamento de duas missões, transformando-se num daqueles objetos que reinterpreta um momento marcante de um país sem abdicar de tempo e engenho para desenvolver as personagens e aprofundar um ideal de tensão. A saber: a constituição da equipa de advogados que enfrentou a Junta Militar argentina durante a ditadura..Julio Strassera, o procurador-geral que ficou famoso por conseguir provar os crimes dos militares, é interpretado, com um humor cínico por um dos maiores atores do mundo, Ricardo Darín, a estrela argentina famosa por filmes como O Segredo dos seus Olhos, de Juan José Campanella, e Truman, de Cesc Gay. E é ele quem precisamente conta ao DN, num clube de ténis fino em Veneza, o começo da sua participação, desta vez igualmente na função de produtor.."Vim parar a este filme pela forma como o Santiago Mitre me falou da sua ideia para este episódio da nossa Argentina. Foi o seu desejo que fez o meu. Ou seja, não fui eu quem foi à procura deste papel, antes pelo contrário, nunca fui amigo de fazer personagens baseadas em pessoas reais. Já recusei uns dez projetos devido a esse meu receio, mas este aceitei, porque também queria contar a história do julgamento das Juntas. Este poderia ser um filme importante, impactante se tivesse um bom guião. E mal li a primeira versão disse logo ao Santiago para contar comigo!".Darín fala com um castelhano límpido, pausado, daqueles que um português nem precisa de tradução. Olha olhos nos olhos para os jornalistas, aperta a mão com força e tem um sorriso que não está nos filmes. Talvez por isso, algumas das entrevistas tornam-se virais no mundo hispânico e na Argentina é um herói, um exemplo de humanismo. Uma estrela que não é vedeta e que sabe a importância de interpretar este procurador-geral que foi peça-chave de um símbolo de uma esperança democrática no seu país.."No começo ele é alguém que tem uma certa tensão, que até é capaz de dizer que a História não quer nada com tipos como ele e que não tem o carisma ou a força para aquele julgamento. Este homem estava com a sua autoestima muito em baixo e absorvido com toda aquela responsabilidade, sobretudo por ter uma idade já avançada e estar já cansado de trabalhar no Departamento da Justiça desde os tempos da ditadura. Enfim, foi sempre alguém que nunca pôde fazer o que queria. É muito interessante o filme referir essa faceta deste homem, mas também é interessante ver a sua evolução.".Santiago Mitre, realizador que deu a Ricardo Darín em La Cordillera, papel "presidencial", afirma que este filme vai mostrar novos dados históricos deste julgamento que terá mudado a face da nova Argentina: "Somos um país que pensou muito sobre a ditadura e este julgamento deixou-nos muito orgulhosos. É algo que toca a todos, mas quando fiz a pesquisa para o filme não parei de descobrir factos inéditos, sobretudo relacionados com a forma como foi feito. É preciso ver que os jovens que Strassera trabalhou eram muito jovens e ninguém os conhecia. Não sabia, por exemplo, que advogados famosos, não quiseram estar nessa equipa... Levar esta história ao cinema é uma forma de dizer que precisamos de lutar pela democracia diariamente"..Algo inesperadamente, talvez pela astúcia do argumento, este drama de tribunal, mistura sem promiscuidade humor no meio das relações dos advogados com as suas famílias. Não é truque popularucho, apenas mais um aspeto que confere ao filme um toque de humanismo que outros dramas de tribunal mais sisudos dispensam.."O Ricardo Darín e eu sabíamos que havia essa característica do Strassera, que era visto como um louco. Ontem, aqui na estreia de Veneza é que percebi que as pessoas se riem mesmo nessas cenas. Por seu turno, parte desse humor chega com a vontade de humanizarmos este processo. Não quis que só víssemos o lado mais negro de Strassera... Humor neste filme tão pesado? Enfim, as pessoas contam anedotas nos velórios... Mas fiquei feliz com as gargalhadas. Neste filme onde também se chora, o humor é bem-vindo!", completa o realizador, alguém cujo ponto de inspiração para escrever e dirigir esta história passa pelo facto de sua mãe ter trabalhado no Departamento de Justiça de Buenos Aires toda a sua vida. "Ela contava-me muitas histórias sobre o Strassera! Sempre conheci as loucas histórias sobre o seu feitio! Foi mesmo daí que nasceu a raiz deste filme. Este procurador-geral era uma boa personagem de cinema"..No fim, pequeno teste à humildade de Darín: será fácil na Argentina levar com o fardo de ser o ator mais acarinhado? "Não sofro fardo nenhum! Isso da fama e do reconhecimento depende da forma como te relacionas com os outros. Aqueles que se concentram apenas no seu ofício, não têm problemas, mas também temos exemplos de quem com pouco se sente demasiado grande. Tenho a tendência a estar no grupo dos que agem com naturalidade.".dnot@dn.pt