"Qualquer homem meu que morre, morre um bocado de mim. Sabe, até as almas estão mortas"
A vida do comandante José Domingues mudou muito desde o sábado passado. Começou o dia a pensar num jogo de futebol com uma equipa da Associação Desportiva de Figueiró dos Vinhos de veteranos "Os Jolas" e acabou-o a combater um dos piores incêndios que até hoje aconteceu em Portugal. E a temer pela vida de cinco elementos da corporação de Castanheira de Pera que ficaram gravemente feridos na sequência de um acidente na Estrada Nacional 236 -1- a Estrada da Morte, como ficou conhecida.
Dois dias depois, o comandante dos bombeiros voluntários recebeu a noticia da morte de Gonçalo Conceição, um dos homens que seguia no carro que tentava regressar a Castanheira para combater o fogo. Desde esse sábado, não mais parou. Esteve num estado que define como "automático". E a mexer, para "não pensar".
E, de facto, não para. Atende telefonemas, responde pelo rádio, recebe e dá abraços a quem chega ao quartel e quer saber quando era o funeral "do Gonçalo" - foi na quarta-feira. As solicitações são muitas, entrevistas, conversas com elementos do quartel, sempre a mexer por entre uma enorme garagem completamente cheia de paletes de águas, enlatados, massas e outros mantimentos que vão sendo aqui entregues. Ao mesmo tempo chegam grupos de bombeiros de vários concelhos do país que andam pela região no combate ao incêndio que começou pelas 14.30 de sábado e provou 64 mortos e mais de 200 feridos - sete com gravidade.
Entre conversas e decisões José Domingues conta a sua experiência no terreno - preferiu ser ele a falar sobre o fim de semana e início de semana difíceis. Tenta, assim, defender, um grupo que está fragilizado pelos acontecimentos de sábado e pela incerteza sobre o futuro dos quatro elementos que ainda estão hospitalizados .O quinto, Gonçalo Conceição, morreu na segunda-feira e o seu funeral realizou-se na quarta-feira.
Na realidade, José Domingues, que tem 60 anos e vai fazer 43 de bombeiro em julho, acaba por falar mais do Gonçalo "Assa", como era conhecido o bombeiro que morreu do que dele.
Os feridos "são todos aqui da terra, um é chefe, ia lá também o filho (com 20 e poucos anos), o chefe tem 40, outro é subchefe (tem 40 e tal anos e é filho de um antigo comandante) e uma moça de 20 e poucos anos que trabalhava num serração que foi toda levada pelo fogo". Destes, a rapariga está a recuperar, enquanto os restantes se mantêm com prognóstico reservado.
"O envolvimento com que as coisas se sucedem e a rapidez com que tínhamos de nos deslocar penso que em alguns, inclusive em mim, faz com que exista uma espécie de programador que deve ter carregado no botão certo e ajustamo-nos à situação" começa por dizer antes de ser interrompido por uma dúvida de alguém.
Quando a conversa é retomada, o fio condutor vai para o homem cujo funeral juntou várias personalidades - o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro, António Costa, por exemplo. "Ele era fora do normal. Dava a camisa e se fosse preciso ia comprar mais duas. Era um empreendedor, tinha uma churrasqueira muito procurada. Fazia viagens, empurrava os outros para a frente. Não sei o que posso dizer mais".
E como se lida com a morte de um camarada? "São situações complicadas. Eles [os agora 59 elementos da corporação] não conseguem estar parados, continuam a cumprir as missões. Estão a dar uma grande manifestação de solidariedade para com o Gonçalo, porque de certeza absoluta que ele iria fazer o mesmo se tivesse acontecido a outro colega".
No futebol com "Os Jolas"
José Domingues não estava em Castanheira de Pera quando o incêndio se iniciou. Integrava "Os Jolas", uma equipa de futebol do escalão de veteranos onde é o capitão e defesa central - "sou o mais velho deles", diz.
Mas, depois com as noticias sobre o fogo acabaram por deixar o jogo. "Nunca tinha enfrentado uma coisa assim. Não estava aqui quando se deu a ignição de Pedrógão, logo a seguir chegou a Figueiró e depois com uma rapidez que ninguém esperava envolveu o meu concelho. Tudo com uma rapidez fora do normal. Está mais que provado que foi uma espécie de ciclone que se desenvolveu, com uma agressividade no terreno que foi impressionante", adiantou.
Explicações não tem, mas quer confirmar suspeitas, nomeadamente sobre o que aconteceu aos cinco elementos que seguiam no carro que sofreu o acidente. "Estávamos na viagem de regresso quando soube, eles vinham para Castanheira e a estrada já estava com bastante fumo e as pessoas assustadas. Um condutor embateu na viatura e deduzindo o que possa ter acontecido, o carro ter-se-á incendiado e eles terão tentado tirar os ocupantes lá de dentro e pode ter havido uma explosão, por causa da gasolina. É uma dedução, mas espero que os quatro que estão feridos possam contar a sua versão".
No meio de tantas emoções - momentos antes tinha chegado ao quartel uma jovem com um ar triste e que praticamente só abanava a cabeça e que ali foi levada para se encontrar com um elemento do apoio psicológico - José Domingues pouco parou em casa, só lá foi na terça-feira à hora do almoço, ou seja quatro dias depois do início do fogo. Encolhe os ombros e volta ao tema Gonçalo: "Isto foi uma injustiça. Digo-lhe do fundo do coração, qualquer homem meu que morre, morre um bocado de mim. Temos de saber lidar com isto."
O comandante dos voluntários de Castanheira de Pera - casado e tem duas filhas - acumula as funções com o trabalho como instrutor de condução. E nem sabia o que fazer a meio da semana pois tinha um aluno para preparar para "o exame" e a disponibilidade de tempo começava a ser pouca.
"Sabe, até as almas estão mortas", concluiu a conversa pois já estava a ser requisitado em outro lado, era preciso sair do salão que estava a ser preparado para receber o velório de Gonçalo "Assa", o bombeiro de 40 anos, divorciado e com um filho de 10. "É uma brecha", repete José Domingues.