Réveillon. O velho ritual que a pandemia interrompeu
A última celebração de Ano Novo testemunhada por Fernando Pessoa foi na mudança de 1934 para 1935, mas a experiência acumulada e a sabedoria de um poeta que se inscreveu na história permitiram-lhe descrever de forma certeira este fenómeno ritualístico.
"Ficção de que começa alguma coisa! Nada começa: tudo continua" são os primeiros versos de "Ano Novo", o poema que coloca a nu a realidade de uma tradição que coletivamente repetimos religiosamente: "Começar só começa em pensamento", avisava. A verdade é que apesar dos festejos de final de ano acontecerem sempre a 31 de dezembro, nem sempre foi assim. Até ao século XV, Portugal e muitos outros países da Europa regiam-se pelo calendário juliano, instaurado pelos romanos, que media a passagem do tempo pela Era de César.
Esta forma de organizar o calendário viria a ser substituída em Portugal, por carta régia de D. João I, em 1422, pelo calendário gregoriano, assente na Era Cristã e cujo início remonta ao ano do nascimento de Jesus Cristo. A alteração implicava que às datas anteriores fossem subtraídos 38 anos, de forma a converter a Era de César em anos da Era Cristã - por exemplo, o ano de 1217 da Era de César corresponde ao ano de 1179 da Era Cristã. Significa isto que o método que hoje utilizamos para nos orientarmos no tempo nada mais é do que uma construção artificial, que organiza cada ano civil em torno das principais celebrações cristãs.
Apesar dos poucos registos sobre o ritual da passagem de ano em território nacional durante a Idade Média, sabe-se que em muitas regiões do planeta e em vários países da Europa os festejos aconteciam em datas diferentes. Enquanto em Veneza a chegada do novo ano era assinalada a 1 de março, os anglo-saxónicos começaram por celebrar a efeméride a 25 de dezembro, mais tarde a 25 de março (à boleia da Festa da Anunciação) e, por fim, a 1 de janeiro.
Não será, porém, necessário recuar no tempo para encontrar exemplos de culturas que comemoram o momento em data alternativa. Na China, e noutros países orientais, o calendário é regido pelas fases da lua e pela posição do sol, significando que o Ano Novo chinês é celebrado em janeiro ou fevereiro. Em 2020, começou a 25 de janeiro; em 2021, a 12 de fevereiro; e 2022 está marcado para 1 de fevereiro.
Mais do que uma data inequívoca e comum a todos os mortais, a chegada do novo ano está assente em calendários artificiais e representa, de certa forma, a superstição inerente ao ser humano. Desde os tempos mais longínquos que os povos recebem a nova fase da vida com rituais que apregoam a prosperidade, a fertilidade, a sorte ou a saúde. Apesar destes rituais variarem de cultura para cultura, ainda hoje a generalidade dos portugueses faz a festa e cumpre, pelo menos, um destes requisitos: comer 12 passas ao badalar da meia-noite, deitar fora roupa e objetos velhos, mergulhar no mar ou cantar as Janeiras. São muitas as tradições e existem para todos os gostos, mas todas têm o mesmo em comum: afastar o azar, atrair a sorte e começar o novo ano com uma folha em branco.
No caso das 12 passas ingeridas à meia-noite e acompanhadas de igual número de desejos para os 12 meses que aí vêm, a origem não é consensual, embora sejam apontados vários significados possíveis. Entre elas, a explicação assente no acerto dos 12 dias de diferença entre o calendário solar e o lunar, que seriam, tradicionalmente, acertados no último mês do ano. Por outro lado, há quem prefira ligar o ritual à crença cristã que associa o vinho a Cristo e que veja aqui uma referência indireta à prática religiosa.
Ao longo das décadas, muitos foram os momentos históricos que marcaram os festejos de Ano Novo em Portugal (ver caixa). Se é certo que na Lisboa de hoje a festa faz-se, tradicionalmente, ao som de concertos no Terreiro do Paço e debaixo de uma chuva de fogo de artifício que pinta o Tejo, no final de dezembro de 1959 a celebração terá sido diferente para alguns alfacinhas. No dia 29 era inaugurado o Metropolitano de Lisboa numa cerimónia reservada à elite e aos membros do Governo, sendo apenas permitida a entrada dos primeiros populares no dia seguinte, a 30 de dezembro. Os jornais da época descrevem as filas que se formaram de madrugada para visitar os túneis do novo transporte na cidade e havia mesmo quem comparasse a afluência a uma partida de futebol entre Benfica e Sporting. O mais curioso, aponta o historiador de arte e olisipógrafo Paulo Almeida Fernandes, é "o facto de alguns lisboetas terem passado o fim de ano nas carruagens do metro quando este foi inaugurado", tal seria a vontade de experienciar a grande novidade da cidade.
De lá para cá, assistiu-se ao receio sobre o bug do milénio, à final de reality shows, à chegada de uma nova moeda e também, em 2020, àquele que seria um dos mais esquizofrénicos finais de ano de que há memória: se por um lado todos desejavam que o ano da pandemia chegasse ao fim, outros temiam a sorte que 2021 teria reservado. Certo é que nesta sexta-feira volta a assinalar-se o término de mais 12 meses, novamente com restrições por causa da pandemia e, por isso mesmo, sem o tradicional fogo de artifício, mas com a expectativa de que 2022 traga a tão ansiada normalidade.
A cada ano que termina e dá lugar ao seguinte, ficam as recordações de momentos marcantes vividos durante os festejos de Ano Novo. Ao longo do último século, são muitos os acontecimentos dignos de registo, dos quais o DN destaca cinco que vale a pena recordar. Da corrida aos multibancos ao bug que ameaçava congelar o progresso, ficam os momentos mais marcantes.
1921-1922
Os loucos anos 20
Após a passagem por uma pandemia que ceifou a vida a dezenas de milhares de portugueses entre 1918-19 e depois do fim da I Guerra Mundial, a década de 20 trouxe irreverência, euforia e movimentos de emancipação. Mas trouxe também a moda das festas de dancing para os clubes mais reputados da capital, como o Maxim"s ou o Avenida Palace, que adotavam a tendência europeia para as grandes festas de passagem de ano. "As mesas do restaurante estão todas reservadas, esperando-se uma assombrosa concorrência. Basta dizer-se que é noite de festa no Maxim"s", lia-se na edição de 31 de dezembro de 1921 do extinto Diário de Lisboa.
1999-2000
O bug do milénio
O receio de que os programas informáticos não fossem capazes de atualizar a data de 1999 para 2000, alterando o ano para 1900, tomou conta do mundo inteiro à beira da viragem do século. Por cá, o Ano Novo celebrou-se com expectativa e com a presença de dois ministros - Jorge Coelho e Mariano Gago - e do primeiro-ministro, António Guterres, no Centro Operacional de Informações do Governo, nas Picoas. Ao soar da meia-noite, o tão temido bug não aconteceu e os presentes puderam brindar ao novo ano.
2000-2001
O reality show que parou o país
Em 1977, a novela brasileira "Gabriela" ficou conhecida por ter motivado o adiamento de sessões na Assembleia da República para que todos pudessem assistir à história, mas o fenómeno televisivo capaz de congelar Portugal viria a repetir-se a 31 de dezembro de 2000 com a final da primeira edição do Big Brother. O programa, que foi sucesso de audiências e que marcou o início dos reality shows no país, anunciou Zé Maria como o grande vencedor, inaugurando a tradição de terminar este tipo de produções durante os festejos de Ano Novo.
2001-2002
O dinheiro do futuro coletivo
Desejos de prosperidade fazem parte da tradição na noite da passagem de ano, mas há 20 anos era a chegada do euro que marcava os festejos um pouco por toda a Europa e Portugal não foi exceção. A ameaça de subida de preços e a novidade de uma moeda comum criaram um ambiente de expectativa e desconfiança, mas sobretudo de curiosidade. À meia-noite de 1 de janeiro de 2002, foram muitos os portugueses que correram aos multibancos para ver e sentir, pela primeira vez, as notas que vinham substituir o escudo. "Portugueses entre os primeiros na corrida à moeda única", relatava a primeira página do DN nesse dia.
2020-2021
O ano que todos querem esquecer
Passaram 365 dias desde este momento, mas será seguro dizer que ficará para sempre na história pela ausência dos grandes festejos de Ano Novo um pouco por todo mundo. Em Lisboa, a pandemia de covid-19 fez com que o Terreiro do Paço não tivesse música e com que as ruas se despissem de pessoas, cantos e brindes para dar lugar às festas digitais. Portugal preparava-se para dar as boas-vindas a 2021 com o segundo confinamento nacional e uma onda de contágios e mortes como até aí não tinha acontecido. Na despedida deste ano, o cenário vai repetir-se com o cancelamento dos principais eventos da passagem de ano.