Retrospetiva de Godard é o tema central do Festival do Estoril
A expressão "mestre do cinema" surge quando falamos de Jean-Luc Godard. Mas acaba por ser francamente insuficiente. Não é possível abordarmos o autor de filmes tão marcantes como Pedro o Louco (1965), Paixão (1982) ou Eu Vos Saúdo, Maria (1985) como se fosse "apenas" um nome emblemático da cinefilia - ele é, afinal, nos últimos 60 anos da arte europeia, um dos principais criadores de formas (designação que o próprio Godard já aplicou a Alfred Hitchcock). Por isso, a imensa retrospetiva que o Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFEST) lhe vai dedicar constitui uma proposta central no interior do certame e, não tenhamos dúvidas, dos acontecimentos fulcrais do nosso ano cinematográfico.
A iniciar-se logo no dia de abertura do festival (dia 4), com a projeção da sua primeira longa-metragem, O Acossado (1959), o evento inclui um simpósio internacional (CCB, dias 11, 12 e 13) em que participarão os críticos e historiadores Jonathan Rosenbaum e Jean-Michel Frodon.
Uma das perceções que a retrospetiva poderá ajudar a corrigir tem a ver com o fundamental lugar de Godard na integração do vídeo em muitos registos do cinema contemporâneo. A ilusão corrente de que o movimento Dogma 95 (dos dinamarqueses Lars von Trier, Thomas Vinterberg, etc.) foi, em meados da década de 1990, pioneiro nesse processo pode e deve ser corrigida por alguns dados rudimentares.
Foi, de facto, em 1975, portanto 20 anos antes da eclosão do Dogma, que Godard iniciou uma visionária utilização das câmaras de vídeo. Aconteceu num filme emblematicamente intitulado Número Dois (porque, no dizer do próprio autor, se tratou de um recomeço, isto é, do seu "segundo primeiro filme"). As suas cenas intimistas expunham a decomposição das relações tradicionais no interior do espaço familiar - cineasta e historiador, sociólogo e filósofo, Godard compreendia que, para além de qualquer questão tecnicista, eram as relações humanas que entravam num tempo de profundas e dramáticas transformações.
A morte do cinema?
Será possível ver também algumas das raridades que Godard assinou para televisão, incluindo Seis Vezes Dois (1976), sobre a evolução das linguagens e, em particular, as dinâmicas do trabalho científico e France/Tour/Détour/Deux/Enfants (1977), genial ensaio sobre as relações (ou a falta delas) entre adultos e crianças. São objetos tão fulgurantes e inventivos que, em última instância, nos permitem perceber que os modelos de "entrevista" e "reportagem" que continuam a dominar o dia-a-dia televisivo estão atrasados, pelo menos, 40 anos.
A pedra-de-toque de todo este processo criativo é essa obra monumental que foi surgindo ao longo de uma década (a partir de 1989), com o nome revelador de História(s) do Cinema. Ao utilizar o vídeo como instrumento de trabalho para revisitar os mais variados temas - da invenção formal de Hitchcock aos modos de tratamento do Holocausto, passando pelo classicismo de Hollywood -, Godard sinaliza também uma pergunta de que ele continua a ser o narrador privilegiado. A saber: estará o cinema a morrer?
Para além de qualquer efeito de moda, Godard reformulou-a também através da experimentação com as três dimensões: primeiro, no episódio Os Três Desastres, da longa-metragem 3x3D (produzida por Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura); depois, no prodigioso Adeus à Linguagem (2014), cujo título envolve o desespero de estarmos a viver a morte, não do cinema, mas dos valores mais primitivos da própria inteligência humana.
Os limites da linguagem
O envolvimento de Godard com todas as grandes revoluções técnicas e narrativas do cinema moderno suscita com frequência um velho preconceito: ele não passaria de um "formalista" alheado da existência dos cidadãos comuns... Em boa verdade, é exatamente o oposto que podemos observar: pela sua filmografia passam alguns dos temas centrais da França (e das sociedades europeias) ao longo do último meio século.
Um dos exemplos mais reveladores poderá ser a abordagem das convulsões de Maio 68, a começar por esses filmes premonitórios que são Fim de Semana e O Maoista (ambos de 1967), prolongando-se pelos títulos da chamada "fase militante" (incluindo Vent d"Est, 1970) e desembocando na desencantada reflexão de Tudo Vai Bem (1972). Este último, paradoxalmente ou não, ilustra também a sua disponibilidade para integrar nomes fortes do star system. Tudo Vai Bem é mesmo um filme protagonizado por duas das maiores vedetas da década de 70: Jane Fonda e Yves Montand.
O exemplo de Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967), com Marina Vlady (outra atriz muito popular na época), pode condensar essa dimensão social do trabalho de Godard. Refletindo sobre o crescimento de Paris e o nascimento das cidades da periferia, o filme apresenta-se como um relatório clínico sobre o labirinto da vida humana, desde a organização do trabalho às políticas sexuais, das diferenças geracionais ao poder das imagens publicitárias. Como diz o próprio Godard, na voz off do filme, "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo".