Rescisões de contrato. Juristas não veem ilegalidade no pacto entre clubes da I Liga
A decisão anunciada na terça-feira pela Liga, da existência de um pacto entre os clubes de futebol da I Liga para não contratarem jogadores que rescindam unilateralmente o seu contrato de trabalho, evocando questões provocadas em consequência da pandemia do covid-19 ou de quaisquer decisões excecionais decorrentes da mesma, não é ilegal nem contraria as leis do trabalho. Esta é opinião de dois especialistas em Direito Desportivo ouvidos pelo DN.
"Não conheço os termos desse chamado 'pacto de não agressão'. Presumo que se trate de um acordo de cavalheiros, não escrito, sem caráter vinculativo, isto é, algo que não é obrigatório, sem sanções para quem incumpra. Nesse contexto não questiono a sua legalidade. Pelo contrário, saúdo um valor ético associado muito importante. São as entidades empregadoras, solidárias entre si, que não se vão aproveitar do momento. No fundo, este é um exemplo prático daquilo que o Tribunal Arbitral de Desporto de Lausana tem vindo a denominar como o 'princípio do fair play', enquanto princípio geral e específico do Direito do Desporto. É algo prático, tangível, não estratosférico. E ainda bem", referiu Alexandre Mestre ao DN.
Opinião semelhante tem o jurista Gonçalo Almeida, especialista em Direito Desportivo que trabalhou para a FIFA como advogado entre 2001 e 2006. "Sendo um pacto de cavalheiros, não tendo força legal, a sua aplicação depende única e exclusivamente da vontade de todos os clubes. Se estivéssemos a falar ao nível de regulamentos desportivos implementados neste caso pela Liga, a proibir os seus clubes filiados de celebrarem contratos com os jogadores que tivessem rescindido os contratos de trabalhos desportivos no âmbito desta questão pandémica, aí sim poderia estar ferido de inconstitucionalidade, uma vez que impediria o acesso ao trabalho. Neste caso não. É vinculativo até que as partes ou uma delas mude de ideias. Depende única e exclusivamente das partes cumprir com esse acordo de cavalheiros", expressou.
Um dos maiores problemas neste momento no mundo do futebol prende-se com a duração dos contratos dos jogadores que expiram no final desta época (a 31 de junho) e dos acordos de empréstimo. Com as competições suspensas, e com planos de poderem ser retomadas em junho ou julho, isso significa que a época será forçosamente estendida, em alguns casos podendo até entrar pelo mês de agosto. E neste caso como ficam os contratos dos jogadores que expiram a 30 de junho? Os futebolistas são obrigados a aceitar estendê-los?
"A resposta a essa questão não é óbvia. Eu entendo que não, que não são obrigados. Se o seu contrato caduca a 30 de junho ficam livres, prevalecendo a autonomia das partes, a vontade contratual. E eu acho que se as partes tiverem previsto no contrato o respetivo termo a 30 de junho e não no final da época, a vontade das partes foi mesmo terminar a 30 de junho. Bem sei que ao prever-se 30 de junho tem-se em mente que regulamentarmente a Liga prevê essa data como o final da época desportiva, e não se antecipa que a época seja suspensa/prorrogada (ainda que seja algo regulamentarmente revisto, a possibilidade de suspensão). Mas creio que a interpretação a dar à vontade das partes vai no sentido de que queriam mesmo o 30 de junho. Tanto assim é que alguns jogadores celebraram outros contratos a partir do dia 1 de julho, com outras sociedades desportivas, em regra com melhores condições financeiras", refere Alexandre Mestre, antigo secretário de Estado do Desporto e Juventude.
Gonçalo Almeida acredita que neste caso as linhas orientadoras da FIFA não deverão levantar grandes problemas. "A FIFA já se pronunciou sobre o assunto, com recomendações e sugestões que não são vinculativas, apenas linhas orientadoras. A solução passa por protelar o termo da época desportiva até que terminem as competições oficias e assim protelar também o início da próxima época desportiva, que dentro da UEFA, na esmagadora maioria das ligas inicia-se a 1 de julho. Assim seriam igualmente protelados os contratos de trabalho que teriam início a 1 de julho e os acordos de empréstimo, que entrariam em vigor quando se iniciasse a próxima época. Julgo que são sugestões razoáveis e até consensuais, que zelam pelos interesses de todas as partes, jogadores e clubes."
Alexandre Mestre alerta contudo, a este propósito, para "a questão do instituto jurídico da 'alteração anormal das circunstâncias', previsto no Código Civil, segundo o qual a parte lesada, no caso a sociedade desportiva, num tal contexto, pode exigir a modificação dos termos de um contrato, podendo invocar um 'dever de renegociação'". "Mas não seria honesto intelectualmente se dissesse perentoriamente que há uma resposta única para toda e qualquer situação. O preâmbulo dos contratos, o que foi e como foi negociado em sede pré-contratual, outras provas, são elementos relevantes, caso a caso", concluiu.
O antigo secretário de Estado do Desporto e Juventude não concorda com a ideia de que têm sido feitos atropelos à lei no caso do futebol. "São situações novas, imprevistas, nem tudo tem resposta nos regulamentos e na lei. São também leis novas que necessariamente o Estado está a elaborar à pressa, e que nem sempre têm a redação mais óbvia, mais feliz, nem sequer pensada para a especificidade do setor desportivo. O que suscita diferentes interpretações. Sem que haja precedentes, jurisprudência que ajude, que clarifique. Mas tudo, uma vez mais, tem que ser aferido caso a caso", diz.