Regulador dos jornalistas recusa título profissional a responsável de site de propaganda
Não tem "atividade jornalística"; não tem jornalistas; foi classificado como um site "de propaganda". Estas são as principais razões apresentadas pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) ao DN para ter recusado o título de equiparado a jornalista ao responsável pelo site Notícias Viriato, António Abreu. Este tinha efetuado o pedido à entidade de acreditação e fiscalização dos jornalistas depois de o site ter sido registado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) como "publicação periódica de informação geral" - a partir do momento em que existe esse registo, a lei confere-lhe a possibilidade de requerer a carteira de equiparado a jornalista.
Recorde-se que o registo deste site como informativo pela ERC foi objeto de notícia do DN a 27 de janeiro, tendo o BE requerido a audição do regulador no parlamento para que explicasse o facto. A audição teve lugar a 3 de março e em causa esteve a definição de informação que presidiu a tal classificação, assim como o facto de o registo poder levar o público a considerar que o site é credível e constitui um órgão de informação jornalístico, quando este está na lista de vigilância do projeto Monitorização de propaganda e desinformação nas redes sociais do Medialab do ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa.
A inclusão do NV nesta lista foi aliás um dos fatores mencionados pela Comissão da Carteira para negar o pedido de carteira de equiparado ao seu responsável. E cita o coordenador do Medialab, o sociólogo Gustavo Cardoso, nas suas declarações ao DN sobre o Notícias Viriato: "Um projeto de propaganda, perfilhando uma visão ideológica que o afasta de poder ser um órgão de comunicação social tal como é entendido pela maioria dos profissionais jornalistas, académicos e público em geral."
O entendimento da Comissão da Carteira é de que "o registo de um órgão de comunicação social na ERC, sendo obrigatório, não determina nem condiciona a sua [da Comissão da Carteira] atividade", ou seja, não leva automaticamente a que o responsável do referido órgão tenha acesso ao título de equiparado a jornalista, previsto na lei do Estatuto de Jornalista, que regula a profissão e que a CCPJ tem a função de pôr em prática e fiscalizar. "Para a atribuição de um título profissional é necessária a verificação, em concreto, da existência de atividade jornalística, atividade essa que tem de ser desenvolvida, nos termos da lei, por jornalistas", diz a Comissão, que frisa: "Os jornalistas devem elaborar textos jornalísticos originais e únicos e não meras reproduções de outras fontes, eventualmente não jornalísticas, que podem resultar na reprodução de informação que não está contextualizada nem trabalhada jornalisticamente."
E conclui: "O cartão de identificação de equiparado a jornalista é atribuído (...) às pessoas que, [não sendo jornalistas], exerçam, contudo, de forma efetiva e permanente, as funções de direção do setor informativo de órgão de comunicação social jornalístico." Considerando a Comissão que o Notícias Viriato não é tal, entendeu indeferir o pedido.
Foi António Abreu, de 20 anos, que se apresenta como diretor do site, a dar publicamente a notícia deste indeferimento, no Facebook do Notícias Viriato, a 25 de abril: "Devido à recusa da CCPJ de emitir a Carteira de Equiparado a Jornalista, direito de qualquer Director de um Órgão de Comunicação Social registado na ERC, não posso exercer os meus direitos Constitucionais de Liberdade de Expressão e de Liberdade de Imprensa inseridos no artigo 38º da Constituição da República Portuguesa, na Lei da Imprensa e no Estatuto do Jornalista."
O estudante universitário anunciou também que vai recorrer da decisão: "O Notícias Viriato, com dois advogados pró bono (Agradecemos a sua Ajuda do Fundo do Coração) vamos recorrer da decisão da CCPJ nos tribunais e lutar pelo Direito à Liberdade de Imprensa do Notícias Viriato e de todos os Órgãos de Comunicação Social, no presente e no futuro."
Abreu entrou no final de abril no Twitter, onde na definição de perfil colocou "cristão e patriota". Entre as entradas mais recentes contam-se dois retuites de Donald Trump no qual este diz "As Fake News estão no seu máximo! ("The Fake News has reached an all time high!" e "Fake News, as inimigas do povo!" ("Fake news, the enemy of the people!"). Como é sabido, o presidente americano apelida sistematicamente de "fake news" e "inimigos do povo" jornais como o New York Times e canais como a CNN; também o NV acusa a oferta informativa em Portugal de "pobre e manietada", considerando que se caracteriza por "um enviesamento quase asfixiante (...) marcado por uma entediante e monocórdica narrativa informativa da realidade, onde predomina uma visão e modelo monocolor, quase hegemónico e de matriz ideológica, política e cultural." O NV tem até uma secção intitulada "Censura" na qual acusa por exemplo o Observador e o Polígrafo de tentarem "censurar" o site ao publicarem fact checking em que denunciam o facto de o NV veicular incorreções e falsidades.
Também nessa secção do NV, assim como nas redes sociais, António Abreu dá conta de que enviou direitos de resposta para todos os meios que noticiaram o registo do NV pela ERC como correspondendo ao registo de um site de propaganda e desinformação. Nesses direitos de resposta contesta a análise do Medialab, que considera difamatória - chega a perguntar se se trata da "nova Pide" -, invocando como prova de que não é assim o estatuto editorial do site, o qual diz tratar-se o NV de um "Jornal Online Livre e Independente", que "cumpre o código deontológico dos jornalistas". Queixa-se igualmente de não ter sido contactado pelos autores dos artigos. Como vários dos meios não tivessem publicado o direito de resposta (o DN publicou), Abreu apelou para a ERC, que ordenou a publicação, inclusive no programa de opinião Eixo do Mal, da SIC, no qual o comentador Pedro Marques Lopes descrevera o NV como um site de extrema-direita.
Na sua apresentação aos leitores, o NV, lançado em junho de 2019, "assume claramente, sem tibiezas ou equívocos, como referências da sua acção e modelo de intervenção, a defesa e promoção clara dos Valores culturais ancestrais e contemporâneos comuns, genuinamente Portugueses, que nos definem como Povo e Estado Nação, Independentes e Soberanos, com uma Língua, uma História e um Património riquíssimo, singular e extraordinário."
À exceção de entrevistas de produção própria a pessoas maioritariamente conotadas com a direita conservadora e nacionalista (e mesmo com a extrema-direita) - André Ventura, deputado e líder do Chega, o líder do PNR José Pinto Coelho, Pedro Tinoco de Faria (um tenente coronel reformado que diz ""Há Mais Razões Para Fazer Um Golpe de Estado Agora do que no 25 de Abril"), o padre Gonçalo Portocarrero de Almada, Manuel Matias, presidente do Partido Pró-vida, o presidente da Associação Portugueses Primeiro e o presidente da Nova Portugalidade -, e artigos de opinião da mesma área política, o NV só publica, na análise do Medialab, "traduções/adaptações de artigos de outras fontes, por vezes órgãos de comunicação social reconhecidos, outra vezes websites com pendor nacionalista e/ou de extrema direita."
A 9 de janeiro, o NV publicou um texto acusando "rapazes ciganos" de responsabilidade na morte do estudante cabo-verdiano Luís Giovani em Bragança. O texto baseia-se exclusivamente na citação de um post num blogue; esse post, por sua vez, não cita qualquer fonte. Dois dias depois, a 11 de janeiro, António Abreu surgiu na marcha de homenagem a Giovani em Lisboa, em alegada "reportagem" vídeo durante a qual se filmou a repetir essa acusação genérica, interpelando duas pessoas - o dirigente do SOS Racismo Mamadou Ba e um jornalista da RTP -, às quais pergunta "por que é que quando soube que foram ciganos não noticiou? Por que é que quando eram brancos andavam aí a reportar, e quando são ciganos já não reportam? Não acha que isso é racismo contra brancos?"
Tendo a publicação do vídeo em causa suscitado debate e indignação nas redes sociais, a 15 de janeiro o NV publicou um texto assinado por António Abreu no qual este, reagindo à polémica, defende que "a informação deve ser revelada ao povo Português, e que as pessoas responsáveis por quaisquer crimes, independentemente da sua origem/raça/etnia, devem sofrer igualmente o peso da Justiça", e acusa aquilo que denomina de "comunicação social dominante" de "ocultar informação de acordo com agendas ideológicas", afirmando: "Os jornais, televisões e rádio, cumprindo as recomendações da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), com o objectivo de "diminuir o racismo" ocultando as identidades de criminosos, apenas estão a criar mais conflito e divisão racial. O Notícias Viriato recusa ignorar a verdade e não participa nesta fraude jornalística."
Após os alegados responsáveis pela morte de Giovani serem detidos pela Polícia Judiciária, a 17 de janeiro, e de esta pollícia ter afirmado "não há um grupo de ciganos, ponto", o Notícias Viriato publicou, a 22, um pedido de desculpas, designando ainda assim o texto que imputava o crime a "rapazes ciganos" como "notícia". Mais tarde retirou-o do site, mas manteve a publicação de 15 de janeiro e portanto as acusações de fraude jornalística aos meios de comunicação social que tinham, segundo o NV, "ignorado a verdade" e "ocultado a identidade de criminosos".
O DN enviou uma série de perguntas a António Abreu e ao Notícias Viriato, nas quais pede esclarecimento sobre a formação e métodos de trabalho dos autores do site, assim como sobre os critérios que presidem à escolha de temas, entrevistados e textos de opinião e o que entende por notícia.
Também se pergunta qual a argumentação que apresenta para contrariar a decisão da CCPJ, como tenciona provar que o NV desenvolve atividade jornalística e cumpre as regras éticas da profissão e se sabe quais são as normas do Código Deontológico/Estatuto de jornalistas violadas pelo texto sobre os alegados homicidas ciganos de Luís Giovani, ou considera que não viola nenhuma.
Recorde-se que os princípios deontológicos e a ética profissional dos jornalistas obrigam não só a "informar com rigor e isenção, rejeitando o sensacionalismo e demarcando claramente os factos da opinião", como a "abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência". O jornalista deve também "proceder à retificação das incorreções ou imprecisões que lhes sejam imputáveis".
António Abreu recusou responder às questões do DN, alegando que se trata de "mais uma vil tentativa de deturpação e manipulação."
Mas é a própria ERC, questionada pela CCPJ em relação ao registo do Notícias Viriato como "informativo" e citada por aquela na resposta que enviou ao DN, a certificar que "o conceito de informação não pode (...) ser confundido com o de notícias ou conteúdos de natureza jornalística. É um conceito amplo que abrange tudo o que é transmitido", frisando: "A ponderação conferida pela Lei de Imprensa, no que concerne ao conceito de informação, é genérica, não estando confinadas no mesmo, apenas, as notícias ou informações de caráter jornalístico. Será, portanto, aqui entendida como a transmissão de conteúdos." De acordo com esta perspetiva, a ERC considera que o Notícias Viriato "tem como objeto a transmissão de conteúdos com os mais variados temas."
Esta ideia de que informação é tudo e que informativo não significa jornalístico, ou seja, um produto elaborado segundo as normas éticas da profissão de jornalista, fora já explanada na citada audição do Conselho Regulador da ERC na Assembleia da República pelo responsável pela área de registos, João Pedro Figueiredo.
Este assumiu perante os deputados que o registo do Notícias Viriato foi proposto pelo regulador ao site, sob ameaça de multa, e que não foi efetuada qualquer análise de conteúdos prévia à "proposta". Apesar de a lei de Imprensa definir as publicações informativas como aquelas que "visem predominantemente a difusão de informações ou notícias", e de a ERC ter produzido em abril de 2019 um relatório sobre o conceito de desinformação e o perigo desta para a democracia (A desinformação - Contexto europeu e Nacional), assumindo ser papel do regulador combater esse fenómeno, João Pedro Figueiredo afirmou que não existe uma definição legal de informação e que "tudo o que corre é informação". Se "tudo o que corre é informação", este conceito aparentemente incluirá, para este membro do Conselho Regulador da ERC, a desinformação e as chamadas "fake news".
O que explica que a ERC tenha proposto, também em 2019, o registo a um site que a própria já classificara, seis meses antes, como de desinformação - o Bombeiros 24. Na audição no parlamento João Pedro Figueiredo certificou que esse registo era ainda "provisório" e que a situação estava a ser analisada, mas o título Bombeiros 24 mantém-se até esta quinta-feira na lista das publicações periódicas de informação registadas pela ERC, que pode ser consultada aqui.
Isto apesar de no relatório da ERC sobre desinformação se ler: "O desenvolvimento do ambiente digital propiciou a proliferação de sítios online e contas em plataformas digitais que apresentam conteúdos confundíveis com informação noticiosa. Esta é uma realidade que pode levar os cidadãos a atribuir credibilidade a entidades que se afastam do valor social inerente à produção de informação jornalística, cabendo ao regulador dos media proteger os cidadãos destes conteúdos que, aparentando ser notícias, não o sejam."
Confrontado com o facto de a lei exigir, para que uma publicação seja reconhecida como informativa, que esta assegure "o respeito pelos princípios deontológicos e pela ética profissional dos jornalistas, assim como pela boa fé dos leitores", Figueiredo frisou que tal não significa que tem de haver jornalistas nas publicações informativas, não esclarecendo como pode ser exigível a quem não é jornalista respeitar a respetiva ética profissional.
Do mesmo modo, ficou por perceber qual o entendimento que a ERC tem sobre o intuito de tal exigência da Lei de Imprensa, como se afere o seu cumprimento e o que deve suceder caso não seja cumprida. João Pedro Figueiredo remeteu a questão para a Comissão da Carteira, que, como já referido, é de acordo com o Estatuto de Jornalista quem pode fiscalizar a observância da ética profissional dos jornalistas. Porém, por definição, só pode fazê-lo em relação a estes profissionais, devidamente reconhecidos e habilitados por título exarado pela mesma - e não havendo jornalistas numa publicação, como é caso do NV, a CCPJ não tem jurisdição.
Por fim, assumindo que existem queixas na ERC contra o Notícias Viriato (o DN solicitou informação sobre o estado do processo, mas até à publicação desta notícia não obteve resposta), o membro do Conselho Regulador da ERC não só não revelou a que respeitam como foi inconclusivo sobre o tipo de consequências que poderão advir caso se conclua que o site cometeu alguma infração. Não ficou claro se a ERC pode, por exemplo, retirar-lhe o registo. "O que podemos fazer? Ou reclassificar a sua natureza informativa (não é se é jornalística ou não). Se é informativa ou doutrinária, é com isso que podemos jogar", respondeu Figueiredo.
Mas o registo pelo regulador de todo o tipo de publicações, incluindo as de desinformação e fake news, como "informativas" pode ter outras consequências além da de confundir o público. Numa recente entrevista ao deputado do Chega André Ventura, publicada no Facebook do Notícias Viriato, António Abreu comentou a iniciativa do governo de socorrer o setor dos media, muito afetado pela pandemia, alocando-lhe 15 milhões de euros em publicidade institucional, e diz esperar que o site receba a sua parte.
Contra essa possibilidade manifestou-se já a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, pela voz da sua presidente, Leonete Botelho: "Gostaria que os apoios à comunicação social que o Governo já anunciou tenham uma preocupação, desde logo, fundamental, que é ser distribuída a órgãos de informação jornalística. Esta classificação não existe como tal na lei, no entanto, é muito fácil aferir o que é um órgão de comunicação jornalístico: é um órgão que tem jornalistas a trabalhar. É que há um imenso leque de empresas de comunicação que não são jornalismo tout court. Não tem jornalistas, tem outros interesses."
A legislação sobre publicidade institucional não estabelece distinção entre órgãos jornalísticos e não jornalísticos, limitando-se a referir que para serem veículo desta publicidade os órgãos têm de estar registados na ERC e difundir "conteúdos próprios respeitantes a aspetos da vida política, cultural, económica, social ou ambiental da comunidade regional ou local onde se insere, de acordo com o seu estatuto editorial."
A presidente da CCPJ já dissera ao DN, a propósito do registo do Notícias Viriato, considerar que "a lei e as regulamentações são completamente confusas e há uma grande desadequação aos dias de hoje. A legislação não responde ao panorama da comunicação social dos nossos tempos e torna muito difícil a atuação dos reguladores. A questão dos registos das publicações e a sua classificação é algo que nos preocupa desde o primeiro momento do nosso mandato [iniciado em janeiro de 2019], e já nos reunimos com a ERC para discutir este assunto. A grande ambição da comissão é que a lei faça a distinção entre publicação noticiosa e de informação".
Em declarações ao DN na sequência de uma reunião com a ERC e a Associação Portuguesa de Imprensa, que representa os patrões do setor, também a propósito do registo de sites de desinformação, a presidente do Sindicato de Jornalistas, Sofia Branco, argumentava no mesmo sentido: "O Sindicato considera o atual modelo desadaptado da realidade. É preciso distinguir jornalismo do que não é. Deve haver classificações mais específicas - órgão de informação jornalística por exemplo. E deixámos um apelo conjunto, nós e a API, ao regulador, convidando-o a integrar um movimento do setor para pedir ao parlamento que inicie um processo de revisão legislativa no sentido de proteger o jornalismo. E não é só no contexto da desinformação - é no sentido de reforçar o papel do jornalismo em democracia. É preciso reconhecer que é um momento de emergência."