Subir ao topo do monte e olhar a vasta planície dourada era um dos prazeres da vida que Afonso nunca dispensava. Nos últimos meses, foram muitas as vezes em que pensou que nunca ali voltaria. E, finalmente, ali estava de novo, ao lado da sua mulher, Alice, companheira de sempre, que o acompanhou em mais uma conquista decisiva. Como em todas as outras que foi conseguindo nos últimos 3 meses enquanto lutava para recuperar de um terrível AVC (Acidente Vascular Cerebral)..Só se lembrava de estar em casa a preparar-se para jantar quando percebeu que não conseguia segurar a colher para comer a sopa... "Estás bem, Afonso?" - perguntou Alice. Tentou responder, mas nem um som... A boca estava desviada... Valeu-lhe a mulher, que rapidamente reconheceu os sintomas do marido como sendo sugestivos de AVC. "Os 3Fs" que Afonso iria ouvir e repetir vezes sem conta nos últimos meses - "Fala, Face e Força". Perante estes sinais de alarme, Alice ligou para o 112, ativando a Via Verde do AVC - e Afonso foi rapidamente transportado para o Hospital mais próximo. À chegada fez exames que confirmaram o AVC e foi submetido a um tratamento específico para remover o coágulo que entupia uma artéria do cérebro..Os dias seguintes passou-os na Unidade de AVC. Foi muito duro constatar que alguns dos sintomas, embora melhorados, persistiam. Tinha dificuldade em falar e em perceber algumas das coisas mais complexas que lhe diziam. Continuava a sentir um peso no braço e manusear objetos com a mão direita era muito complicado. Sentia que pensava devagar, que tudo à volta era um pouco estranho, que todos os ruídos incomodavam. E as emoções, sempre em carrossel, ora animado com cada pequena melhoria, ora triste e angustiado com a dependência que persistia..Desde o segundo dia de internamento que começou a ouvir falar de reabilitação. E cada conquista, cada melhoria, passaram a ser vividas com o entusiasmo de quem recupera mais um pouco da vida. Afonso pode contar com um plano de Reabilitação desde o primeiro dia, que nunca interrompeu - e todo esse trabalho foi sendo recompensado. A pouco e pouco, sentia-se cada vez mais forte, cada vez mais motivado para voltar a ser o que sempre foi. E este dia marcava o subir de mais um degrau de volta ao caminho que sempre imaginara para a sua vida..O AVC é uma doença muito frequente, continuando a ser a primeira causa de morte e incapacidade em Portugal. Uma em cada 4 pessoas terá um AVC ao longo da vida. Além da elevada mortalidade, mais de 40% dos sobreviventes ficam com algum grau de incapacidade motora ou cognitiva, vendo-se limitados na autonomia. Desta forma, para além dos tratamentos na fase aguda, a reabilitação é uma peça-chave na resposta ao AVC. O início precoce da reabilitação, idealmente após as primeiras 24 horas, é fundamental para maximizar a recuperação..Cada sobrevivente de AVC necessita de um plano personalizado de cuidados, levado a cabo por uma equipa multidisciplinar de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas da fala, terapeutas ocupacionais, neuropsicólogos, assistentes sociais entre outros, procurando devolver ao doente a plenitude das capacidades e promovendo a rápida recuperação da autonomia. Força muscular, equilíbrio, deglutição, ou capacidade de engolir, emoções, linguagem e funções cognitivas ou intelectuais são algumas das principais áreas trabalhadas com o objetivo de promover a rápida e a plena reintegração da pessoa no seu seio familiar, social e profissional. Neste processo é também indispensável o envolvimento dos cuidadores, capacitando-os para os desafios do sobrevivente de AVC e para a exigência pessoal de quem assume este papel, sempre exigente e desafiador..Definida como uma prioridade fundamental no Plano de Ação Europeu para o AVC 2018-2030, o objetivo passa por garantir que pelo menos 90% dos sobreviventes de AVC possam ter acesso a reabilitação precoce. É urgente promover um plano de reabilitação para todos os sobreviventes de AVC, em todas as fases, com todos os meios necessários e sem interrupções. Os primeiros 3 meses são considerados o período de ouro da reabilitação pós-AVC, sendo fundamental garantir a continuidade do trabalho iniciado na fase aguda nas Unidades de AVC. Neste sentido, o Hospital CUF Tejo acaba de criar a Unidade de Neuro-reabilitação. A criação destas unidades especializadas é crucial de forma a evitar a interrupção do processo e a maximizar a recuperação do sobrevivente de AVC..O trabalho de uma equipa multidisciplinar garante prevenção de complicações, melhoria funcional, redução da incapacidade, recuperação da independência, melhoria da qualidade de vida e, numa perspetiva mais abrangente, redução dos custos em saúde. A reabilitação é uma necessidade indispensável para que todos os "Afonsos" do nosso país possam voltar a viver em pleno..Neurologista | Coordenador da Unidade de Neuro-reabilitação do Hospital CUF Tejo