A mais recente série de cinco episódios que explora uma das mais dolorosas páginas da história da cidade de Atlanta, escondida nos arquivos judiciais, começa hoje na HBO: Atlanta's Missing and Murdered: The Lost Children. Recupera o caso das três dezenas de crianças e adolescentes negros que foram dados como desaparecidos, e depois encontrados mortos, entre 1979 e 1981. O documentário pega nesta história não esclarecida para fazer um ponto da situação numa altura em que os dossiês foram reabertos para novos testes às provas, com a ajuda das avançadas tecnologias de ADN agora disponíveis..E é precisamente pelo retomar do caso, 40 anos depois, que tudo começa. No primeiro episódio desta série documental surgem os rostos daqueles que vão remexer no passado, mas também os de quem nunca ficou em paz com esse passado sentido na pele. Não por acaso, como sublinham as autoridades, a investigação que ganha novo fôlego depois de tantos anos só é justificada pelo respeito ao drama pessoal das famílias das vítimas, esquecidas no meio do barulho mediático que veio a colocar uma pedra em cima do assunto: a condenação, em 1981, de Wayne Williams, atualmente em prisão perpétua, acusado do homicídio de dois homens e sobre quem a polícia fez recair as grandes suspeitas de ser o serial killer responsável pelas mortes das crianças. Uma resolução com traços de "fecho de pasta" mal-amanhado e que deixou muitas pontas soltas..Ao longo dos episódios é feito o perfil de Williams, também ele afro-americano, tal como as crianças mortas, e conta-se em detalhe as fases da investigação, inclusive a apressada analogia de provas que supostamente o ligam aos assassínios. Hoje em dia, ainda sem respostas conclusivas, e salvo raras exceções, as mães e irmãos destas crianças que agora seriam adultos acreditam na inocência do homem em quem se depositou uma culpa virtual. Perto do fim da série, são mesmo reveladas imagens em tribunal do recurso de Williams, em 1991, que dão conta de revelações sobre fortes indícios e suspeitas de membros da Ku Klux Klan que estiveram nos registos da polícia, na altura da investigação, e nunca vieram à tona. Porquê? Era necessário manter os ânimos sociais controlados e, culpado ou não, Wayne Williams seria o conveniente bode expiatório..Mas, como referido, na base da nova investigação está a dignidade da memória destas crianças e adolescentes. Por isso o documentário procura balançar a narrativa de Williams com os casos individuais, detendo-se, com a devida dedicação, sobre cada um deles e nos depoimentos dos familiares que vivem com uma ferida nunca sarada..Atlanta, a cidade da prosperidade afro-americana.O pesadelo teve início no verão de 1979, quando os corpos de dois adolescentes foram encontrados na floresta, estando estes desaparecidos há vários dias - algo que, na altura, não foi tomado como uma ocorrência extraordinária. Porém, com a assustadora regularidade de desaparecimentos que se seguiram, e corpos descobertos semanas ou meses depois em rios ou atrás de contentores do lixo, o medo instaurou-se nas zonas mais desfavorecidas da cidade americana, onde as crianças eram sequestradas, e algumas mães começaram a sentir-se revoltadas perante a falta de atenção generalizada sobre os crimes. Uma delas, Camille Bell, chegou a criar uma associação e deu várias entrevistas com o intuito de apelar ao trabalho das autoridades e fazer-se ouvir na comunicação social..No entanto, este foi sempre um caso tratado com alguma reserva. E há uma conjuntura socioeconómica que o explica. Nesse final dos anos 1970, início da década de 1980, Atlanta era uma cidade que crescia a olhos vistos, tornando-se uma atração para os negócios, uma terra de oportunidades e, sobretudo, um símbolo da prosperidade dos afro-americanos - a certa altura, no documentário, há quem lhe chame "Wakanda", esse país fictício do universo Marvel que é tido como a sociedade africana mais tecnologicamente evoluída... Percebe-se a ideia. Mesmo com um presidente da câmara negro, Maynard Jackson, não era possível forçar a barra dentro de um cenário social que se queria arrumado..Assim, o desfavorecimento mediático da tragédia das crianças perdidas parece ter sido determinado não só pela cor da pele dos protagonistas como pela necessidade de manter a aparência saudável de uma cidade, para isso encobrindo os casos obscuros que afetavam pessoas da classe social mais baixa. Uma pedra no sapato que se manteve ao longo dos anos e que Atlanta's Missing and Murdered pretende que volte a causar incómodo - ou melhor, reflexão - através de um vasto conjunto de entrevistas aos envolvidos, com posições antagónicas, reportagens da época e arquivos exclusivos. No fundo, trata-se da complexa montagem de um puzzle em que as peças não encaixam todas e a imagem tarda em definir-se. Este é, acima de tudo, um caso que ajuda a retratar a América de ontem e de hoje.