Sobrinho-neto do autarca de Jerusalém que tentou dissuadir o autor do projeto sionista, sobrinho do líder que recusou a proposta britânica que previa a autodeterminação da Palestina, filho de um diplomata colocado nas Nações Unidas - daí ter nascido e crescido em Nova Iorque -, Rashid Khalidi é professor universitário e historiador. Os seus livros centram-se na terra dos seus antepassados, seja na análise da questão da identidade, seja na luta dos palestinianos pela criação de um Estado. Em A guerra de cem anos na Palestina, traduzido como Palestina - Uma biografia, os acontecimentos de 1917 a 2017 estão divididos em seis capítulos, ou antes, seis "declarações de guerra", numa escrita que liga os factos às memórias pessoais e documentos da família..Este livro parte de um ponto de vista original, a do historiador participante. Como foi escrever na primeira pessoa sobre acontecimentos históricos?.Na realidade foi muito difícil, porque toda a minha formação como historiador é a de o autor se afastar dos eventos. Inserir-me na narrativa foi uma experiência totalmente nova para mim. Foi o meu filho, que é dramaturgo, quem me convenceu a fazê-lo. "Tens de levar as tuas experiências para que o leitor compreenda na totalidade que não te limitas a descrever acontecimentos sobre os quais leste, mas que viveste", disse-me..Como responde aos críticos que o acusam de parcialidade? Um historiador pode defender causas?.Há um mito sobre o historiador objetivo e neutral a flutuar num balão acima da realidade, sem conexão com a terra. No tempo de Hegel, no tempo de Gibbon, a história é escrita sob uma perspetiva, geralmente em termos modernos numa perspetiva nacional ou étnica. Ibn Khaldun não escreveu sobre um qualquer tipo de sociedade, escreveu sobre a sociedade árabe. Quando escreveu sobre Roma, Gibbon estava a pensar no Reino Unido, Mommsen na Alemanha ou Guizot em França. Os grandes historiadores estão a escrever a partir de um lugar e tempo específicos, com os respetivos pontos de vista, parti pris e preconceitos da sua era, etc. Fingir que sou um cidadão neutral da Terra seria um absurdo. Obviamente, tento ser objetivo e de sustentar em fontes aquilo que digo. Quando vejo algo que é questionável, digo-o, e o leitor que julgue. Para aqueles que branqueiam o que Israel fez, é claro que é natural lançarem suspeitas sobre a parcialidade dos historiadores da narrativa palestiniana. Um israelita escrever sobre Israel é natural, ninguém o acusa de parcialidade..Apesar de hoje já existir literatura como a sua sobre a Palestina, ainda persiste uma certa ideia de que os palestinianos, como disse a antiga primeira-ministra israelita Golda Meir, não existem. O que os diferencia, por exemplo, dos jordanos?.A questão da identidade está cheia de equívocos. A maioria dos ideais nacionalistas sobre identidade referem-se às suas raízes primordiais. Há todo um respeitável corpo de estudos académicos que suscita dúvidas sobre essa abordagem nacionalista e que o nacionalismo é uma construção relativamente moderna. Na III República Francesa os manuais escolares referiam-se aos "ancestrais gauleses" como a linha de continuidade entre os tempos pré-romanos e a III República. Isto é uma construção, é o que Benedict Anderson chama de comunidade imaginada. Israel é uma comunidade imaginada. Existe Israel na Bíblia? Sim. É o mesmo que o Estado de Israel hoje? Não. Existe uma coisa chamada Palestina, Falastina na geografia árabe, há dois mil anos? Sim. É a mesma coisa que a Palestina hoje? Não. As identidades nacionais são quase todas forjadas no século XIX. Em muitos casos, o Estado cria a nação. A Revolução Francesa, em certo sentido, criou a nação francesa. Na parte de França em que estou agora falavam provençal e a sua ligação a França resulta de o seu rei não ter um herdeiro varão em 1453. Esta é uma parte integrante de França desde os gauleses? Claro que não, a não ser que acreditemos na mitologia francesa. Há uma fronteira entre a Jordânia e a Palestina, um Estado-nação existe com a capital em Amã desde que Winston Churchill desenhou os seus limites, em 1920. O mesmo para Israel. O Estado-nação judaico é um conceito moderno criado no século XIX por Theodore Herzl. Antes disso, os judeus eram um povo ou um grupo religioso, mas não tinham que viver no Estado-nação de Israel nem tinham de rumar à Palestina. Num certo sentido, não há diferenças entre palestinianos e libaneses ou jordanos e sírios. Todos falamos a mesma língua, temos mais ou menos a mesma gastronomia, e mesmo se formos até mais longe, Iraque e Egito, encontramos muita coisa que partilham, mas o sentido moderno de nacionalismo não o permite..E a ideia de não existirem palestinianos deve-se ao sionismo ou aos próprios palestinianos?.Foram os britânicos que criaram isso. A ideologia colonial exige a negação da existência dos autóctones, é uma necessidade absoluta para reclamar que se é o único detentor de um território, tendo de negar as outras reivindicações. Israel é um projeto nacional, mas também um projeto colonial construído na negação da maioria esmagadora de quem lá vivia antes de 1948, que era a maioria árabe palestiniana. Uma das razões pelas quais alegavam que não existíamos é que, se o admitissem, então qual seria a sua relação connosco?.Como explica que os israelitas encontrassem nos norte-americanos um povo especialmente recetivo à narrativa bíblica do povo judeu regressar à sua terra. E os britânicos? Porque é que o império britânico deu meios para que o projeto sionista se concretizasse?.Os britânicos estabeleceram muitos empreendimentos coloniais, mas fizeram-no como extensão do seu próprio povo e com a sua soberania. O que foi feito na Palestina foi totalmente único. Penso que o motivo principal é estratégico. Antes da I Guerra, os britânicos tinham concluído que o Egito estava vulnerável a um ataque do Leste. E de facto, na I Guerra, tal aconteceu, com um ataque dos otomanos, que fecharam o Canal do Suez. Muito antes de qualquer ligação ao movimento sionista, os estrategos e políticos britânicos estavam determinados não só ao controlo da Palestina mas também a toda a faixa entre o Mediterrâneo e o Golfo. O outro foi o antissemitismo e a simpatia pela ideia sionista que tinha raízes no cristianismo evangélico. Muitos líderes britânicos eram cristãos devotos e para eles a ideia do regresso dos judeus à terra de Israel torna-se central, sem dúvida. E a outra é o antissemitismo. Enquanto primeiro-ministro, lorde Balfour foi responsável pelo Aliens act de 1905, que deixou os judeus refugiados dos pogroms russos fora de Inglaterra. Um funcionário britânico de topo falava em estabelecer um pequeno Ulster judaico no meio do mundo árabe. Penso que resume a estratégia..Durante o mandato britânico, em 1939, surgiu o Livro Branco, que contemplava limitações à emigração judaica, à transferência de terras e à autodeterminação do território , mas foi recusado. À luz dos dias de hoje, não foi um erro?.Eu tenho defendido que os palestinianos deviam ter aceitado o Livro Branco, porque teria sido a oportunidade de dar à Palestina a independência, com uma maioria árabe, num prazo de 10 anos. Com o eclodir da II Guerra Mundial, o Reino Unido não estava em condições de cumprir a promessa e havia cláusulas escondidas que tornavam o possível impossível, mas teria sido bastante sensato aceitá-lo. Já o plano de partição anterior, de 1937, previa a criação do Estado judaico e ligava a maior parte da Palestina à Transjordânia, que estava sob controlo britânico. E os palestinianos, que já estavam sob o seu controlo há duas décadas, a última coisa que queriam era mais uma forma de poder britânico..Declarou a primeira intifada um sucesso. Como é que a Palestina perdeu a oportunidade? Foram os acordos de Oslo um fracasso?.Fiz parte das negociações antes de Oslo, em Madrid e Washington, e o motivo pelo qual foram um fracasso é que os palestinianos não compreenderam que não lhes estavam a oferecer a independência ou a autodeterminação, mas autonomia debaixo do total controlo israelita. Foi um grande erro terem aceitado isso. Israel não quis ceder em Washington e foi fazer um acordo direto com Yasser Arafat em Oslo. Os palestinianos reconheceram Israel, mas Israel nunca reconheceu a Palestina. O primeiro-ministro [Yitzhak] Rabin fez grandes mudanças na posição israelita: reconheceu a existência de determinada coisa chamada palestinianos, reconheceu o representante da Organização para a Libertação da Palestina e concebeu negociar com a OLP. Foram avanços significativos, no entanto nunca aceitou a ideia da independência da Palestina..É tempo para enterrar a solução dos dois Estados, de recuperar a ideia de um Estado federal, Isratina, proposto por Muammar Kadhafi?.Eu não valorizaria Kadhafi por ter apresentado essa ideia. A OLP já tinha, nos anos 60, proposto um segundo Estado democrático quando Kadhafi era somente capitão. De facto, foi criada uma solução de um só Estado. O que vai acontecer no futuro desconheço. Um sistema de cantões, um sistema federal, um único Estado com duas nações... não sei. Mas acho que se pode dizer que Israel, com as suas ações desde 1967, assegurou de forma deliberada que não pode haver um Estado palestiniano. Pelo menos num futuro previsível..A visita de Joe Biden, dentro de dias, a Israel e à Cisjordânia poderá trazer nova luz à questão?.Não. Joe Biden está profundamente comprometido com o statu quo. Ele recusa-se a iniciar uma investigação ao homicídio de uma cidadã norte-americana [a jornalista Shireen Abu Akleh] por um franco-atirador israelita. E recusa-se a reverter várias políticas do seu antecessor, Trump, seja a unificação de Jerusalém, seja a mudança da embaixada de Telavive para Jerusalém, seja o encerramento do consulado [para a Palestina], não mudou qualquer destas políticas. Pior que tudo, aprovou e promoveu a política do antecessor, de Israel normalizar as relações com países árabes enquanto continua a oprimir os palestinianos. Não discuto que Biden tem obviamente uma abordagem diferente da de Trump, mas não fará qualquer progresso a respeito da resolução deste conflito. Se voltar a candidatar-se e for reeleito, talvez faça algo diferente..É de criticar os países que normalizam relações com Israel?.Todos os países que normalizaram as relações - Marrocos, Sudão, Emirados e Bahrein - não representam o seu povo. Existe uma ampla indignação da opinião pública nestes e noutros países árabes, não contra a normalização de relações, mas para que seja feita na condição de que se resolva a questão palestiniana. Só representam a sua ganância e o desejo de se manterem no poder com apoio externo de Israel e EUA..E a credibilidade da liderança na Palestina? Na Cisjordânia está no poder um líder doente e que adia eleições, na Faixa de Gaza uma organização considerada terrorista....Penso que esta é uma parte negligenciada do problema, o facto de os palestinianos terem de lidar com o estado de divisão, incoerência e falta de estratégia da liderança. Isto é parte do problema. Israel, os EUA e os países árabes podem ficar isentos de responsabilidades em parte porque estes problemas são palestinianos e são estes quem tem de os resolver. São tornados mais difíceis por terceiros? Sem dúvida. Israelitas, turcos, iranianos, sauditas, egípcios, interferem na política palestiniana. É essencial para eles manterem os palestinianos divididos. Na verdade, nenhum deles é representativo, e isto é um problema que têm de ser os palestinianos a resolver. Não creio que vá haver melhorias significativas, exceto se as coisas mudarem em pelo menos dois lugares. Um é na Palestina e depende dos palestinianos. O outro é nos EUA, onde há sinais de mudança, onde as pessoas estão a ficar menos acríticas em relação a Israel e com mais compreensão pelo que se passa, ou seja, a opinião pública está a mudar. Se aceitarmos Israel como um projeto de povoamento colonizador, os EUA e a União Europeia são a metrópole, e enquanto a metrópole não mudar e os palestinianos não trabalharem em conjunto, não é de esperar grandes mudanças em Israel e no mundo árabe. O espírito de resistência mantém-se em toda a Palestina, isso viu-se em maio do ano passado. Mas é necessário mais do que isso: estratégia, coerência, unidade, etc., e uma forma inteligente de chegar aos americanos, europeus e israelitas que não creio que estas lideranças desacreditadas e corruptas tenham..Palestina - Uma Biografia.Rashid Khalidi.Ideias de Ler.402 páginas.cesar.avo@dn.pt