Os relatos de pais indignados têm chegado ao Portal da Queixa, à medida que continuam a ser disponibilizados os vouchers para a recolha dos manuais escolares gratuitos. São "cada vez mais" as reclamações em relação aos livros entregues às famílias, comparativamente com o último ano, garante o presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), Jorge Ascenção. Descrevem situações em que lhes são entregues livros desenhados, pintados e escritos, sem qualquer intervenção por parte das escolas, responsáveis por tratar e avaliar a capacidade de reutilização dos manuais..A maioria das reclamações visa sobretudo os livros do 1.º ciclo, apesar de a medida de gratuitidade, que arrancou em 2016/17, ter sido este ano alargada a todos os anos de escolaridade obrigatória.A explicação está no facto de serem livros que contêm espaços em que os alunos escrevem, desenham e colam autocolantes, e por isso não estão adaptados para a estratégia de reutilização.."Os livros que me foram entregues neste ano (reutilizados) estavam bastante escritos (nem apagados foram!)", escreve Andreia Ferreira, no Portal da Queixa. Também Helena Cardoso relata que, "no final do ano letivo anterior, não foi aceite o manual de história porque tinha uma folha descolada a qual se apresentava já devidamente colada" e este ano sente-se "lesada" por ter visto serem entregues livros "sem capas, sem folhas, completamente riscados e ainda por apagar". Assim como acontece com a filha de Nuno Albuquerque, que recebeu um livro de Português "totalmente escrito e com a capa interior rasgada". "São manuais que estão concebidos para que as respostas sejam dadas no próprio livro! E vão reutilizar estes livros?", questiona Tânia Janeiro..Mas há "muitas outras" queixas que vão chegando à Confap. O presidente da confederação acredita que "não são mais porque há pais que, perante a dificuldade de se dirigirem à escola em período laboral para resolver o assunto, acabam por se conformar com o que recebem"..Jorge Ascenção aconselha os pais a verificarem os livros, de uma ponta à outra, assim que os recebem, e a reclamarem se considerarem que não estão aptos para reutilização. "As escolas têm a obrigação de resolver o problema", sublinha. Um conselho reforçado pelo Ministério da Educação. Em resposta ao DN, a tutela afirma que os encarregados de educação devem "dirigir-se às escolas e solicitar que este tipo de situações sejam corrigidas", caso suspeitem que os "pressupostos legais e regulamentares não estão a ser cumpridos e em que o estado dos manuais possa fundadamente comprometer as finalidades pedagógicas a que se destinam"..Jorge Ascenção conta que "há escolas que estão a trocar por livros em boas condições, reutilizados ou novos, mas outras têm-se mostrado reticentes"..Num artigo lançado na quarta-feira, a Deco Proteste recomenda que, "caso não haja abertura do estabelecimento de ensino para substituir os manuais", o encarregado de educação "pode recorrer à Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE)". Através do atendimento presencial (entre as 9 e as 17 horas), por carta ou do seu site . Contudo, a Deco Proteste aconselha mesmo "a expor o caso por escrito, para haver registo da queixa", com as fotografias dos manuais em anexo, se possível..Mas lembra que "a escola e a DGEstE não estão obrigadas a cumprir um prazo para dar resposta à reclamação"..Dez mil euros em jogo.Segundo o guia de Apoio à Reutilização de Manuais Escolares, lançado pelo governo, a seleção dos que podem ser novamente aproveitados para circular entre alunos depende de diversos fatores. Entre eles "o número de utilizações anteriores", "a idade dos alunos e ano de escolaridade" (referência ao 1.º ciclo), "a existência de espaços em branco para preenchimento", a "deterioração inerente ao uso normal" ou mesmo a "verificação de danos anormais", bem como "outras circunstâncias objetivas e subjetivas a avaliar pela escola"..Em todo o caso, são as escolas que "decidem no âmbito da sua autonomia quais aqueles que são passíveis de efetiva reutilização e os que não o são", lembra o Ministério da Educação..Para as vinte que apresentem as taxas de reutilização mais elevadas, o governo promete um prémio de dez mil euros. E o presidente da Confap não hesita em dizer que há escolas que estão a ceder à pressão do concurso e, por isso, desleixaram-se na avaliação dos manuais. "Ou não fizeram o processo de análise dos manuais - e aqui o problema seria ainda mais grave - ou olharam para eles e acharam que não havia problema em seguirem assim", reitera Jorge Ascenção..Mas o presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), Filinto Lima, garante que as instituições de ensino não foram influenciadas pelo prémio. "Até porque não querem ter problemas com os pais", diz, em declarações ao DN..A campanha, anunciada pelo governo no início deste ano, já tinha sido criticada por diretores de escolas. "Não se pode tratar por igual o que é diferente", disse o presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), no mês passado, em entrevista ao DN. Manuel António Pereira referia-se às escolas onde estão matriculados maioritariamente alunos que vivem em situações precárias e, por isso, mais sujeitos a serem aqueles com manuais em pior estado de conservação..Pais optam por comprar manuais.Jorge Ascenção adianta que o descontentamento com o estado dos manuais está a levar vários encarregados de educação a optar por comprá-los. Um relatório da entidade Observador Cetelem, divulgado no ano passado, concluía que 97% dos pais portugueses optaram por adquirir os livros em vez de obter aqueles que são atribuídos pelas escolas, em segunda mão. Número que Jorge Ascenção pensa não ser tão elevado neste ano, apesar da desconfiança no processo. "A adesão ao programa de manuais reutilizados está a aumentar, mas as famílias estão a sentir-se defraudadas."."Não é ético nem responsável entregar livros que não são reutilizáveis e que prejudicam a aprendizagem. Os livros reutilizados têm de estar em bom estado. Se não estão, têm de entregar livros novos aos alunos", reforça..Até porque, no final do ano letivo, aquando da entrega dos manuais, são os alunos que já os receberam em mau estado que podem sofrer penalizações. Caso os manuais não sejam entregues em bom estado, os encarregados de educação devem pagar o valor desse livro ou, na ausência de pagamento, ficarão sem um manual gratuito no ano seguinte..A Confap diz já ter denunciado a situação à tutela, que refere que, "de uma forma geral", a entrega de manuais "tem decorrido de forma regular sem problemas a registar e as queixas que têm chegado são absolutamente residuais"..Manuais não estão adaptados à reutilização.Em julho deste ano, o Ministério da Educação anunciou que a reutilização dos manuais dos 1.º e 2.º ciclos no ano passado se situou nos 45%. Neste ano, a taxa de reutilização ultrapassou os 50% - um aumento de 40% face ao primeiro ano em que a gratuitidade dos manuais foi implementada, que se situou nos 10%..Mas os diretores das escolas continuam a apontar os dois primeiros anos de escolaridade como o calcanhar de Aquiles das estatísticas, em que os livros não estão adaptados à cultura de reutilização. Estes manuais estão arquitetados para que os alunos escrevam, desenhem, pintem e até colem autocolantes no papel. O que dificulta a transmissão deste para um outro estudante no ano seguinte.."Alertamos para esta condição desde que foram anunciados os manuais gratuitos. Porque a arquitetura dos mesmos, nestes anos de escolaridade, não permite a reutilização, mas também é a forma mais eficaz para crianças destas idades aprenderem", diz o presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap). A solução, diz, "deveria mesmo passar por ceder livros novos, pelo menos no 1.º ano de escolaridade, para incentivar os alunos que têm os seus primeiros manuais, e permitir que ficassem com eles de recordação"..O Ministério da Educação lembra que, "à medida que novos manuais venham a ser certificados e adotados, estarão paulatinamente mais preparados à reutilização". E o dirigente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) acrescenta que é já em 2022 que todos os livros deverão estar adaptados..Mas Filinto Lima não tem dúvidas de que a cultura de reutilização "vai demorar anos" a ser absorvida pelos alunos e encarregados de educação..Durante uma comissão parlamentar, que decorreu na mesma altura, a secretária de Estado da Educação descansou os deputados que questionavam a menor capacidade de reutilização dos manuais no 1.º ciclo. "A latitude de apreciação destes manuais é maior", disse, referindo-se aos critérios de avaliação para decidir a reutilização de cada manual..Desde o início de agosto que os manuais gratuitos podem ser requisitados através da plataforma MEGA, responsável pela distribuição e controlo dos mesmos. Até agora, segundo o Ministério da Educação, já quase a totalidade dos vouchers foram emitidos, mas apenas metade levantados . Face ao balanço, a tutela "reitera a importância de os vouchers serem resgatados logo que possível, para evitar maior sobrecarga e afluência às livrarias no início do ano letivo, bem como eventuais atrasos no acesso aos manuais escolares"..Os encarregados de educação interessados estão incumbidos de submeter a candidatura no site, através do qual são emitidos vouchers em que podem levantar os livros..A distribuição de manuais contempla quer os novos quer os reutilizados, distribuídos aleatoriamente. Os vouchers relativos a manuais novos podem ser levantados em qualquer livraria aderente e os reutilizados no agrupamento do aluno..A medida custará cerca de 160 milhões de euros e o governo estima que mais de um milhão de estudantes beneficiem da iniciativa..No fim de semana, o Presidente da República defendeu uma maior reutilização dos manuais escolares para se cumprir o objetivo social da medida. "A percentagem de reutilização dos manuais escolares tem de ser mais elevada para cumprir o objetivo social", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa durante a Festa do Livro que tem organizado nos jardins do Palácio, todos os verões. Para o Presidente essa reutilização "tem de ser tendencialmente a 100% e isso não foi atingido até agora".