"Queremos reforçar o papel de Serralves enquanto palco nacional"

A nova diretora do Parque de Serralves quer reforçar a rede de ligação com os municípios e alargar a esfera de influência do parque como palco "capaz de mostrar a cultura do país". A agenda da biodiversidade e o reforço da ligação à ciência são outros compromissos de Helena Freitas.
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Minhota (de Famalicão) que desde cedo abraçou a causa da conservação da natureza, doutorada em Ecologia pela Universidade de Coimbra, a professora catedrática Helena Freitas é a nova diretora do Parque de Serralves, cargo que esteve vago durante grande parte dos últimos cinco anos. Mas, na verdade, já "fazia parte da casa, pois era desde agosto de 2020 coordenadora-geral da equipa diretiva do Parque. Nesta entrevista, dá a conhecer os planos que espera desenvolver no icónico espaço urbano portuense, desde a certificação do Serralves em Festa como evento sustentável até à reabilitação do roseiral, passando pelo reforço da interdisciplinaridade e da ligação entre arte, natureza e ciência.

Que visão tem para o Parque de Serralves? Quais os objetivos a que se propõe?
Eu tenho a vida relativamente facilitada, porque Serralves tem-se afirmado ao longo do tempo sempre por uma postura de enorme qualidade, de uma grande transparência, de abertura, de interdisciplinaridade. Há aqui um conjunto de argumentos que estão na matriz da própria Fundação e daquilo que, no fundo, esta instituição sempre representou, numa primeira fase primeiro para o Porto mas rapidamente também para a região e para o País. Serralves é uma pérola que se vai abrindo e revelando, surpreende-nos sempre na forma como vai expressando essas linguagens que conseguiu captar, no plano da arquitetura, da cultura, da paisagem, do cinema... enfim, foi trazendo valências que todas elas são muito inspiradoras. O Parque em si também está muito bem, na componente natural a vegetação está bem tratada, tem havido uma renovação permanente dos espaços, das espécies... Em boa verdade, chego num tempo de convergência. Convergência entre a minha própria disponibilidade (e um conhecimento que adquiri também nestes dois últimos anos de maior proximidade com a instituição, enquanto coordenadora geral da equipa do Parque) e o tempo que vivemos, um tempo em que vamos tentar abrir, queremos sair deste encerramento em que fomos obrigados a estar.

Disse na apresentação da programação para 2022 que quer reforçar a interdisciplinaridade e a ligação entre arte, natureza e ciência em Serralves. Será o eixo central da sua intervenção?
Sou uma pessoa ligada desde sempre à causa ambiental, às questões da natureza, também tenho muito uma matriz ligada à ciência e esses cruzamentos são cada vez mais pertinentes também aqui em Serralves. Sinto que há aqui esse poder. Serralves inspira essa fertilização cruzada entre a arte e a ciência e isso hoje é fundamental para fazermos a tal transformação societal. É hoje inequívoco também que a ciência tem um papel cada vez mais importante na sociedade e as sociedades estão, em si, mais recetivas ao conhecimento. E há aqui em Serralves uma dimensão cultural e artística que é também inspiradora dessa mudança. Portanto, há aqui uma convergência importante, que é a base da programação para a sustentabilidade que quero aqui reforçar.

Traz uma experiência vasta ligada à causa ambiental e da conservação da natureza, na qual se englobam oito anos como Diretora do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra (2004-2012), tendo elaborado e coordenado o seu programa de requalificação. É um desafio semelhante, este?
Não, não é. Os tempos também são distintos. Claramente, hoje estamos a viver essa saída da situação pandémica, em que as pessoas começam a apreciar uma outra relação com a natureza, e este é um Parque urbano muito simbólico. O jardim botânico é diferente, tem uma vocação mais educativa, está inscrito na dinâmica universitária e muito orientado para a a formação botânica. Aquele, porque é no centro da cidade de Coimbra, responde também à dimensão do usufruto do espaço verde, mas Serralves é um Parque verde urbano que tem esta complementaridade com a arquitetura, com os edifícios, com o museu. Há um feliz encontro que faz deste um universo único, muito singular em Portugal e até em muito contextos do mundo.

Essa vertente de Parque urbano que incorpora uma lógica de fruição do espaço faz parte do ADN de Serralves. Uma das expressões máximas é o Serralves em Festa, suspenso pela pandemia. Tem regresso prometido para este ano? E vai de alguma forma reforçar esse relacionamento com a comunidade, prepara alguma novidade nesse sentido?
Eu quero o mais possível reabilitar todo o tipo de relação de proximidade com as pessoas. Tudo que for possível fazer nesse sentido, desde o Serralves em Festa ao Serralves em Luz, Bioblitz, quero o mais possível acentuar essas dinâmicas de usufruto pleno por parte das famílias, das crianças, dos diferentes públicos. Só se não for de todo possível, mesmo. O Serralves em Festa está na programação prevista para este ano e estamos até a trabalhar na sua certificação como evento sustentável. O que eu gostaria também de reforçar, e que já estava previsto, é uma dinâmica mais inclusiva, que tenhamos capacidade também de dar resposta às crianças, jovens e adultos com problemas de acessibilidade, alguma incapacidade física. Queremos ser ainda mais acolhedores para esses públicos. E, por outro lado, acho que temos de fazer mais também nas dinâmicas intergeracionais. Gostava de reforçar a capacidade de trazermos netos e avós, essa cumplicidade entre gerações.

Já têm algum programa preparado para isso?
O Serralves em Festa já tem um pouco esse espírito e a dinâmica de Serralves até se confunde muito com essa filosofia familiar. As pessoas vêm usufruir do espaço em família, e essa é uma marca que temos de reforçar e valorizar. Depois, na lógica de reforço da ligação com as comunidades, estamos a pensar trazer também a rede de municípios com que Serralves tem uma relação estreita, e mostrá-los, divulgá-los. Serralves tem força suficiente para ser, mesmo no plano nacional, um palco capaz de mostrar a cultura do país. Aliás, neste ano, aproveitando a ideia das 12 Reservas da Biosfera nacionais, vamos tentar celebrar as Reservas trazendo as comunidades e mostrando também ao público, do Porto e não só, as vivências desses locais de Portugal. Essa vai ser também uma forma de transformar Serralves, reforçar a expansão e o papel que tem enquanto palco nacional.

É detentora da cátedra UNESCO em Biodiversidade e Conservação para o Desenvolvimento Sustentável, pela Universidade de Coimbra. Que papel tem o Parque de Serralves num reforço da agenda ambiental e do compromisso com a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável?
Eu não vou para lado nenhum sem levar comigo a agenda ambiental, porque está comigo desde sempre. Quero muito reforçar essa intervenção de Serralves, que é também uma intervenção já histórica - o Bioblitz é um exemplo de um momento extraordinário de dinâmica associada à biodiversidade e vamos tentar até que outras escolas do país possam usufruir desse trabalho científico extraordinário. Portanto, neste domínio há já aqui algumas marcas e vamos ter que as valorizar. Haverá em junho uma conferência europeia dedicada aos fungos, uma área muito importante da biodiversidade que é mais desconhecida e que vai ser agora objeto de grande investimento da ciência internacional. E vai haver também uma grande exposição, The Art of Mushroom. A arte também pode ajudar nessa consciencialização. E a biodiversidade vai ser uma questão essencial na nossa mensagem, vamos ver se conseguimos passá-la de diversas maneiras, até porque este é um ano muito importante, pois vamos ter a COP 15 em abril e a tentativa de um acordo muito próximo do que aconteceu com o acordo de Paris, mas para a biodiversidade.

O Parque terá um papel mais interventivo na promoção e na divulgação científica?
Todas as unidades de investigação e universidades são bem-vindas para criar dinâmicas de ciência em Serralves. Tenho o propósito de incentivar esse diálogo e colaboração ampla. Depois, essa promoção e divulgação da ciência já acontecia e espero que continue a acontecer através das iniciativas de ciclos de conferências que já temos e que vamos continuar, mas talvez destacasse também duas ações que vão promover uma dinâmica de ciência particular e nova. Por um lado, vamos instalar um pequeno laboratório, que vamos construir, de biologia de comunicação de plantas, um espaço laboratorial até para que as crianças das muitas escolas que nos visitam possam ter um primeiro contacto com o que é um laboratório onde se faz ciência e possam elas também fazer algumas experiências. E vamos ter também um projeto, que eu acarinho especialmente, uma instalação permanente num sobreiro que temos junto ao Treetop, com um equipamento que vai permitir monitorizar em tempo real como é que uma planta usa a água e usa o carbono, e qual o seu potencial de sequestro de carbono. Com isso podemos construir uma programação à volta da importância das áreas verdes para a questão da mitigação climática e para o sequestro do carbono. É uma iniciativa com uma mensagem científica fortíssima.

Aproveitando o tema da descarbonização, o próprio Parque vai reforçar esse seu papel como agente da descarbonização? Há metas de descarbonização em Serralves?
A Fundação também está a preparar o seu roteiro de descarbonização. Enquanto instituição tem essa obrigação. E o primeiro passo que demos foi fazer um exercício de toda a nossa fatura de carbono em 2019, para termos um ano "real", ainda não marcado pela pandemia. Portanto, hoje temos uma noção muito precisa da pegada de carbono da instituição, e falo da pegada desligada do sumidouro de carbono e do stock de carbono que o Parque representa e que há de, em algum momento, entrar na fatura de descarbonização da instituição. Claro que podemos dizer "bom, mas estes 18 hectares que temos dão um fator de compensação importante". Claro que sim. Mas nós não queremos contar à partida com ele. Queremos ter um roteiro de descarbonização que passe pela eficiência energética, pela redução daquilo que desperdiçamos... e isso vai ser público.

Há uma meta objetiva fixada já?
Sim, mas isso há de ser divulgado no momento próprio pela Fundação, não quero ser eu a antecipar. Mas é de facto um aspeto muito importante e acredito que temos uma responsabilidade institucional fortíssima nessa matéria.

Porquê a escolha da Árvore como tema central da programação do Parque para este ano?
Tem que ver com tudo isto que temos estado a falar. A árvore é um ser vivo notável e que nos presta inúmeros serviços, e que eu acho que nós conhecemos mal e ainda respeitamos menos. É tempo de voltarmos a olhar para a árvore, até porque vamos ter de repensar as próprias cidades. A sustentabilidade é a linguagem do novo mundo e a árvore é uma peça essencial.

Vai haver novidades quanto ao património vegetal?
No essencial, o que vamos fazer é a reposição de algumas árvores, há uma lista de espécies que identificámos e que gostávamos de trazer, também algumas espécies autóctones. De facto, o coberto arbóreo é aquele que se torna mais visível em Serralves e queremos continuar a valorizá-lo. Temos tido também uma intervenção a nível fitossanitário, sobretudo na substituição do buxo, porque houve uma situação de doença que se tornou irreversível. E estamos a fazer a reabilitação do roseiral, vai ser uma das unidades do Parque que vamos valorizar.

É um elemento icónico do Parque...
É. E acho que é icónico porque Serralves tem também essa dimensão romântica que a própria história da casa mostra. O roseiral é um elemento icónico dessa narrativa e vamos renová-lo completamente.

Vai haver também uma nova estufa no Parque...
Sim, na quinta. Já existe uma pequena estufa de uns 20 metros quadrados, que era basicamente um espaço de apoio à hora, mas estava um bocadinho disfuncional. E conseguimos um projeto para uma nova estufa com uns arquitetos jovens, estimulando mais uma vez a tal ligação entre a arte e a ciência. O propósito da estufa também é servir como estrutura inclusiva de todo o tipo de crianças e jovens com dificuldades de acessibilidade e vai ter associado um programa de ciência, à volta do solo e da importância do solo.

E em relação ao património animal?
Deixe-me aproveitar para dizer que estamos a reinventariar, em colaboração com a Universidade de Aveiro, a biodiversidade do Parque, com um novo site que terá a biodiversidade do Parque toda georreferenciada. Logicamente a vida animal vai estar aí também presente. De resto, o charco é uma das áreas onde vamos valorizar a vida animal associada a este ambiente aquático, que é da maior importância, nomeadamente anfíbios. A avifauna é também sempre muito apelativa e queremos fazer uma iniciativa com o Parque da Peneda-Gerês, em março, para nos trazerem algumas aves de rapina. E depois, claro, há a nossa quinta e as raças autóctones que estão a ser cuidadas e que vivem felizes neste prado. Há também uma pequena zona do Parque que tem estado um pouco descuidada, uma pontinha final ali na quinta, e vamos fomentar lá um programa de polinização, valorizando o papel dos insetos polinizadores.

Uma das marcas do Parque de Serralves é serviço educativo. Há novos planos nesse campo?
Vamos tentar ampliar um pouco as interfaces, designadamente com a ciência, e eventualmente reforçar alguns conteúdos. O programa educativo é muitíssimo bom e a minha intenção é que ele possa ser ainda mais útil, alargando a outras escolas do país. Queria muito criar uma relação com os próprios municípios da rede de Serralves.

O próprio museu e a programação museológica também se vão alargando para o espaço do Parque...
Sim, este ano vamos ter o [escultor] Rui Chafes no Parque [extensão da programação do Museu]. Um dos espaços escolhidos vai ser muito importante para o Parque, porque a perspetiva dessa obra de arte do Rui Chafes permanecer ali vai obrigar-nos a olhar para o espaço na perspetiva da sua reabilitação e refletir sobre como esta nova centralidade artística pode ajudar a criar mais valor numa zona que hoje é mais desfavorecida do Parque.

E qual a sua zona preferida em Serralves, o seu recanto de eleição?
Tenho vários, mas adoro particularmente aquele horizonte que se vê da Casa de Serralves.

rui.frias@dn.pt

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