Não é normal encontrar nas livrarias uma biografia escrita por um autor português sobre uma figura mundialmente conhecida: George Orwell, por exemplo. Em contracorrente e após uma investigação que levou mais de trinta anos, a professora Jacinta Maria Matos acaba de publicar George Orwell - Biografia Intelectual de Um Guerrilheiro Indesejado. 439 páginas ideais para quem admire George Orwell e um ótimo guia para quem o conhece apenas pela rama..As três dezenas de anos que leva este trabalho vão desde que começou a ler Orwell até decidir escrever a sua tese de mestrado: "Como qualquer investigação, nunca está completa, é sempre um trabalho em curso". Entre as causas para todo este tempo dedicado a Orwell estão a escassez de meios bibliográficos e financeiros - "embora várias bolsas me tivessem facilitado a investigação" - e, acima de tudo, o "volume astronómico de material biográfico, contextual e crítico que foi preciso estudar"..A biógrafa não espera ver o seu livro traduzido para um público anglófono ou internacional, ou "tê-lo-ia escrito logo à partida em inglês". Acrescenta que "é um universo de leitores/as substancialmente diferentes e se escrevesse em inglês o livro seria significativamente diferente". Ou seja, explica, "dirigi-me propositadamente a um público português, tentando 'traduzir' muito da cultura inglesa para a nossa e falando deliberadamente a partir da minha localização como portuguesa para outros/as portugueses/as"..O seu primeiro "encontro" com Orwell não foi auspicioso: "Deu-se no liceu, onde Animal Farm (A Quinta dos Animais) era de leitura obrigatória nas aulas de inglês do 5.º ano. Confesso que não foi amor à primeira vista. Lembro-me de achar engraçado o uso da forma da fábula para propósitos políticos, mas a rebeldia da adolescência fez-me olhar com reservas para uma obra tão inequivocamente elogiada pelos mais velhos e que aparentemente passava uma mensagem ideológica em que eu já não acreditava". Resultado: "Deixei o Orwell de lado." Foi só na universidade que ficou "fascinada" pelo autor ao ler Homenagem à Catalunha.".Jacinta Maria Matos é especialista em George Orwell e professora Associada da Secção de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e fez o mestrado na Universidade de Birmigham..Não é habitual termos autores portugueses a escrever biografias sobre figuras mundiais. Porque contraria esta situação?.Não sei se a situação é assim tão invulgar. Há muitos estudos sobre figuras de projeção internacional, mas, por um sem-número de razões, ficam normalmente confinados ao universo académico. A minha intenção foi, de facto, atingir prioritariamente um público não especializado, assim colmatando o que entendo ser uma enorme lacuna no panorama editorial português, dadas as poucas obras existentes no país sobre o autor e o manifesto interesse pela figura..Porque a chama Biografia Intelectual de Um Guerrilheiro Indesejado?.O subtítulo da obra indica, por um lado, que traço a evolução de Orwell como intelectual e escritor político, considerando cada uma das fases da sua vida e a forma como influenciaram a escrita. Nem poderia ser de outro modo, porque Orwell aproveitou muitas das suas vivências para, a partir delas, retirar conclusões do foro político-ideológico. A expressão "guerrilheiro indesejado" vem do próprio Orwell, citando a metáfora que ele usa para falar da posição do escritor face a partidos políticos ou movimentos organizados. Segundo ele, o escritor devia ser como um "guerrilheiro indesejado no flanco do exército regular", isto é, estar ao mesmo tempo "dentro" e "fora", ser solidário, mas subversivo, não aceitando dogmas nem se vergando perante ortodoxias. Para mim, é esta imagem de um Orwell "guerrilheiro", polémico e incómodo que é importante conhecer e revistar constantemente, e que fiz questão de deixar expressa no subtítulo..A orientação de David Lodge obrigou-a a percorrer caminhos que não fossem os que pretendia?.A orientação de David Lodge apoiou e expandiu a minha ideia de que era possível encarar os documentários e ensaios como algo merecedor de atenção e de análise crítica. Com efeito, até à década de 1980, Orwell era sobretudo conhecido pelos romances, e a sua produção não ficcional completamente negligenciada. Escrever uma tese de mestrado sob a orientação de David Lodge alargou, portanto, os meus horizontes críticos, oferecendo-me uma perspetiva muito mais abrangente e multifacetada do autor. Posso dizer que, ainda hoje, o meu Orwell preferido é precisamente o Orwell não ficcional: o ensaísta brilhante, o jornalista versátil e perspicaz, o escritor de documentários sociais que mantêm a atualidade..Alguma vez Orwell esteve tão na moda como na atualidade?.Orwell é indiscutivelmente um escritor "clássico", ou seja, nunca passa de moda. Mas é evidente que teve picos de fama nos últimos 70 anos. O primeiro, durante a Guerra Fria, deveu-se à sua crítica ao estalinismo, que na altura foi mal entendida e indevidamente roubada pela direita, uma vez que a crítica vinha de uma posição de esquerda. O ano de 1984 constituiu, por razões óbvias, um outro momento alto da sua fama, agora com grande visibilidade nos media: adaptações fílmicas e teatrais, artigos em jornais, documentários na televisão, etc. Aí se sedimentou a reputação mundial de Orwell e a sua imagem como "visionário" e "profeta". Desde então, Orwell tem sido repescado quando encontramos algo na realidade à nossa volta que ele já discutira na sua obra, como a vigilância do Estado sobre o indivíduo (por exemplo, aquando do caso Edward Snowden) ou, mais recentemente, a perversão da linguagem na era de Trump. Não sei se Orwell está hoje mais na moda do que antes, mas a internet, as redes sociais e a globalização da informação ampliam efetivamente a sua presença na cultura contemporânea..O que faz ao que descobre através do seu Google Alert sobre Orwell?.Bom, como qualquer investigador/a, seleciono e guardo o material para análise futura, isto é, para estudar a permanência de Orwell na cultura dos nosso dias. Por exemplo: verificar que imagens do autor continuam a ser reproduzidas ou estão a ser criadas, registar quais os textos mais invocados (curiosamente, o ensaio A Política e a Língua Inglesa tem quase tantas ocorrências como Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) e em geral avaliar a sua influência na esfera pública. Hoje em dia, qualquer estudo de Orwell tem inevitavelmente de passar pelas imagens já codificadas do autor e das suas obras, e o Google Alert, sendo um bom indicador das tendências sociais, políticas e culturais, oferece um manancial de dados muito úteis para esse fim..Décadas após a sua morte, ainda é possível fazer novas interpretações sobre a obra e o autor?.Espero que sim, ou o meu livro seria redundante! Mas é claro que qualquer autor clássico é reinventado em cada geração e período histórico, prestando-se sempre a mais leituras e interpretações. Estas decorrem, por um lado, dos desenvolvimentos teórico-críticos, que nos permitem estudar o autor sob prismas novos e, por outro, das condicionantes do momento, que tornam particularmente relevantes aspetos da sua obra que até aí poderiam ter sido esquecidos ou subalternizados. Não prevejo que se esgote em breve o interesse crítico por Orwell, dado o grande número de títulos que continuam a sair sobre o autor - para além da sua permanente atualidade junto do público leitor, como figura que interveio nalgumas das questões cruciais que todas as sociedades enfrentam..A adaptação do pseudónimo do autor para significar um ambiente orwelliano é correto ou uma facilitação?.De certo modo, é uma facilitação e um afunilamento de sentidos, porque evoca meramente o ambiente de pesadelo totalitário de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Mas é inevitável, porque nessa obra reside ainda a fama mundial do autor e, nessa medida, autor e obra são permutáveis. Espero, contudo, que o meu livro forneça aos leitores e leitoras a ideia de que há muitos outros Orwells para além do Orwell de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, e que mesmo este não é tão pessimista e aterrador (nem tão orwelliano) como às vezes se diz....Se Orwell publicasse hoje Mil Novecentos e Oitenta e Quatro ou A Quinta dos Animais, teria o mesmo efeito nos leitores que à data?.Orwell não poderia escrever hoje esses dois romances, porque ambos são fruto das condições do seu tempo, a que Orwell reagiu numa determinada fase da sua evolução literária e ideológica. Mas é verdade que as inúmeras adaptações teatrais das duas obras nos últimos anos, e em vários países, têm sido sucessos de bilheteira, mesmo quando o público de lá sai muito incomodado e perturbado, exatamente como o público televisivo da década de 1950 reagiu à primeira adaptação de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (até houve queixas à BBC pelo suposto "sadismo" do filme!). Obviamente, inquietante ou não (ou, se calhar, precisamente por o ser), o universo dos dois romances ainda fala diretamente ao público atual..Irrita-a que Orwell tenha sido transformado de um ícone cultural num produto comercializável?.De certo modo, sim, porque isso constitui uma simplificação e domesticação do autor, das suas ideias, e de tudo o que ele representa como escritor e pensador. Mas é inevitável, num mundo, como o nosso, em que tudo se reduz a mero bem de consumo, incluindo a cultura. Tendo essa desvantagem, a mercadorização de Orwell também tem o seu lado positivo: demonstra o estatuto de autoridade de que ainda goza, acabando por o manter sempre presente e, portanto, potencialmente interventivo.."Compara" George Orwell a um Robison Crusoe na sua tentativa de se testar. Sem esta confrontação perante um mundo que não era o seu o autor nunca teria sido quem foi?.Depois de cinco anos passados na Polícia Imperial, Orwell precisava de se redescobrir e de descobrir o seu próprio país. O contacto com a pobreza foi uma estratégia para exorcizar a sua cumplicidade no colonialismo, bem como um meio de aprender mais sobre a sociedade capitalista da metrópole. Como tal, constituiu um estádio essencial do seu percurso político-ideológico e esteve na base da sua futura opção pelo socialismo democrático. Orwell revelou sempre uma grande capacidade de confrontar o desconhecido e o diferente e de aprender com eles, "desaprendendo" ao mesmo tempo as ideias feitas que a educação lhe transmitira..Creio que terá avançado neste projeto por admirar a obra de Orwell. Após esta investigação, mudou de opinião sobre o autor e a obra?.A pergunta pressupõe que resolvi escrever um livro sobre Orwell e fui depois fazer a investigação necessária para o efeito, mas não foi exatamente isso que aconteceu. Este livro foi-se escrevendo ao longo de mais de 30 anos de convivência com Orwell, em parte em contextos académicos (investigação, aulas, artigos, orientações de teses, etc.), em parte porque nunca me canso de o ler e de descobrir algo mais sobre o homem e a sua escrita. Assim, fui formando a minha opinião de forma progressiva e gradual antes de começar a escrever - logo, não tive surpresas inesperadas, a não ser em questões de pormenor - quem imaginaria que Orwell teria tanto jeito para cuidar de um bebé?!.Mil Novecentos e Oitenta e Quatro ou O Último Homem na Europa. Orwell optou pelo primeiro título porquê?.Não há informação sobre as razões da escolha. Apenas sabemos que o título esteve em dúvida até ao último momento, e que o seu editor britânico, Frederic Warburg, preferia 1984, enquanto a editora norte-americana, a Harcourt & Brace, favorecia The Last Man in Europe. Será, portanto, pura especulação afirmar que o autor escolheu Nineteen Eighty-Four (por extenso) por esta ou por aquela razão. Acharia ele a data mais sugestiva do que o outro título, dando de imediato a ideia de uma projeção no futuro? E seria 1984 demasiado curto e trivial, daí o extenso? A escolha de um título obedece a um sem-número de critérios, do estético ao editorial, do pragmático ao literário, e é impossível dizer quais pesaram mais neste caso..Quando se fala de Orwell é sempre como autor de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro e A Quinta dos Animais. Esta sua biografia poderá ampliar o interesse na restante obra?.Espero que sim, e esse foi justamente um dos meus objetivos ao escrever o livro. Há muitos Orwells a descobrir para quem só leu Mil Novecentos e Oitenta e Quatro e A Quinta dos Animais, e o conhecimento da sua restante produção irá não só enriquecer o entendimento desses dois romances, mas também fornecerá uma perspetiva menos enviesada do autor e da sua obra. Puxando a brasa à minha sardinha, recomendo vivamente o Orwell ensaísta e o autor de documentários a quem não conheça essa faceta. Aí se encontrará um Orwell no seu melhor: frontal, polémico, curioso sobre os mais pequenos pormenores do real - desde a chegada da primavera aos postais atrevidos vendidos nas praias inglesas - e sempre provocador e estimulante..É possível dissociar o Orwell ensaísta do romancista?.Não só não é possível como não é desejável, sob pena de perdermos alguns dos traços essenciais da figura. Orwell utilizou a escrita ficcional e não ficcional para testar e afinar ideias, olhando muitas vezes o mesmo fenómeno sob ângulos diferentes, de modo que as duas formas de escrita interagem proximamente, encontrando-se muitas intersecções entre uma e outra - e às vezes, curiosamente, algumas contradições!.O que acha de certas polémicas em torno do seu carácter, como no caso das listas?.O famoso caso da "lista", que pôs a circular a noção de um Orwell delator, denunciando figuras com simpatias pró-soviéticas a uma entidade governamental - o que não é exato -, demonstra que, se Orwell tem apoiantes incondicionais, também tem inimigos figadais que não desperdiçam uma oportunidade de o denegrir. Não é surpreendente, porque Orwell foi incómodo durante toda a vida, mesmo para uma esquerda de que ele se declarava apoiante, e o seu espírito de independência gerava controvérsias que o seguiam para toda a parte. Para mim, episódios como o da "lista" mostram que é preciso modular as posições extremas que o autor muitas vezes suscita, sendo tão incorreto e improdutivo santificá-lo como demonizá-lo..Porque escolheu Blair Orwell como pseudónimo?.Eric Blair escolheu assinar a sua obra de estreia com um pseudónimo, porque não estava muito satisfeito com o texto e não queria causar embaraço à família e aos amigos com as suas aventuras enquanto plongeur e vagabundo. Assim, enviou ao seu editor uma lista de nomes, dizendo ter uma ligeira preferência por "George Orwell". Mas, de facto, a escolha foi feita por Victor Gollancz, embora muitos críticos atribuam grande simbologia ao que entendem ser a opção deliberada por um nome tipicamente inglês..Relata o efeito do nome Blair e o de Orwell em Hemingway. Como convivia Blair com essa dualidade?."Eric Blair" é, por assim dizer, uma identidade pré-literária, e foi deixada para trás na carreira de "George Orwell". Sendo meramente utilizada pela família e amigos, surge apenas em contextos específicos e esporádicos. Penso que Orwell se assumiu como "Orwell" logo que percebeu que podia singrar como escritor, e essa sua persona era, sem dúvida, a dominante. No fundo, se bem que distintas, as duas identidades têm muitos cruzamentos e justaposições, mostrando como Orwell se foi construindo através da escrita e aproveitando estrategicamente a experiência de um "Eric Blair", de que fora seletivamente descartando pedaços ao longo da vida, mas que às vezes retorna quando ele menos espera. Não sendo sempre pacífica, a relação entre as duas identidades foi potencializada pelo autor em função do que queria argumentar num determinado texto..Do que mais gosta em Blair e em Orwell?.De Eric Blair não posso dizer muito, porque praticamente só o conheço através da voz severamente crítica de George Orwell. Mas é de registar ter sido uma figura que não se acomodou à educação e modo de vida da classe média-alta em que nasceu, acabando por ter um percurso de vida inesperado e imprevisto. Em Orwell, que conheço melhor através da escrita, admiro sobretudo a capacidade de autoavaliação e autocrítica, a frontalidade e o desassombro com que exprime as suas ideias, independentemente das consequências, e o facto de remar sempre contra a maré, não embarcando em modas nem subscrevendo acriticamente os vários discursos dominantes da altura..George Orwell. Biografia Intelectual de Um Guerrilheiro Indesejado.Jacinta Maria Matos.Edições 70, 439 páginas