Quebrado o impasse. Bazuca tem luz verde. Mas o braço-de-ferro ainda não terminou
A chanceler alemã chegou à cimeira com um acordo de princípio em torno de um texto interpretativo, que seria acrescentado às conclusões da cimeira. A redação adicional garantia o sim de Viktor Orbán e Mateusz Morawiecki, os dois governantes que faltavam para completar a unanimidade necessária para fazer aprovar a globalidade do pacote de fundos europeus.
À entrada vários governantes manifestaram agrado com a perspetiva de um acordo para breve. Foi o caso do primeiro-ministro português, António Costa, que se declarou "mais otimista" do que no dia anterior.
O presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, admitia estar perante um pré-acordo "muito satisfatório", esperando que pudesse ser "encontrada uma solução que nos permita votar o Quadro Financeiro Plurianual e o Regulamento do Estado de Direito na próxima semana".
Parecia tudo acertado para um acordo, sem problemas, sobre a chamada bazuca europeia. A posição concertada entre o governo alemão, que assume a presidência rotativa da União Europeia, e o governo da Hungria e o da Polónia abriu caminho para o consenso. Restava "saber se ele vai existir", como assumiu Merkel.
Percorrer "o centímetro" que restava para o acordo seria não só "uma vitória para a Europa", mas também "uma vitória para o bom senso". Sem mencionar a pressão que o grupo dos chamados frugais foi exercendo ao longo dos vários meses de negociações, Orbán considerou que o dia de ontem era para se "comportarem de maneira razoável".
Mas, com as reticências do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán e do polaco Mateusz Morawiecki ultrapassadas na véspera, um novo percalço atravessou-se no caminho do acordo, no primeiro dia da cimeira.
"Quero saber se o Parlamento Europeu concorda", declarou o chefe do governo holandês, Mark Rutte, conhecedor do peso político daquela instituição, na defesa do mecanismo do Estado de direito que tanta oposição mereceu dos agora entusiasmados primeiros-ministros (polaco e húngaro).
Na prática, o texto impede o bloqueio de verbas, mesmo que se verifiquem violações ao Estado de direito. Ou seja, "a simples constatação da ocorrência de uma violação do Estado de direito não é suficiente para desencadear o mecanismo". E, as medidas só serão tidas em conta "quando outros procedimentos previstos no direito da União" tiverem sido seguidos de modo a "proteger o orçamento da União de forma mais eficaz", lê-se na redação consultada pelo DN.
Mais, o mecanismo só se aplicará ao futuro quadro financeiro, sem retroatividade aos fundos que estão agora a ser executados. E, isto não é consensual.
Rutte chegou à cimeira a prometer bater-se para "ter a certeza de que o mecanismo pode ser aplicado retroativamente". E, já agora, "ter a certeza" de que as interpretações acrescentadas "não levam legalmente à limitação do regulamento ou do seu escopo", inviabilizado o objetivo para o qual foi pensado.
O debate sobre as perspetivas financeiras estava agendado para ser o primeiro de uma longa agenda projetada para a cimeira de dois dias. Mas o governo de Haia solicitou a interpretação dos serviços jurídicos do Conselho e da sua representação permanente na União Europeia. Concluída esta parte do processo, a cimeira esteve interrompida por breves instantes, para esclarecer as dúvidas.
Quando os trabalhos foram retomados, o consenso foi quase imediato, permitindo a aprovação do dossiê dos novos recursos próprios, a partir dos quais Bruxelas poderá recolher empréstimos até 750 mil milhões de euros, para organizar a chamada bazuca, pensada para suavizar o impacto da pandemia.
Em conjunto com o Quadro Financeiro Plurianual, corresponde a um total superior a 1,8 biliões de euros, "para impulsionar a recuperação e construir uma União Europeia mais resiliente, verde e digital", afirmou a presidente da Comissão Europeia, felicitando com "parabéns à presidência alemã do Conselho".
O primeiro-ministro, António Costa acredita que o acordo alcançado "sobre o QFP e o Plano de Recuperação Europeu", dá os "meios para vencer a crise social e económica". "A implementação dos Planos de Recuperação e Resiliência será uma das prioridades da presidência portuguesa", apontou numa breve publicação no Twitter.
"O histórico plano de recuperação europeu decidido em julho está agora a concretizar-se", afirmou o presidente francês Emmanuel Macron, satisfeito com a aprovação de "um acordo sólido sobre o mecanismo a ser implementado, no respeito pelo Estado de direito". "A Europa está a avançar, unida e a cumprir os seus valores", comentou.
O primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki teme que a "a mistura" da atribuição de dinheiro europeu, com o cumprimento do Estado de direito, "crie uma situação muito perigosa".
Numa conferência de imprensa conjunta com Viktor Orbán, Morawiecki admitiu que o próximo passo será levar o mecanismo do Estado de direito ao Tribunal de Justiça da União Europeia para avaliar se a regra proposta está em conformidade com o direito europeu.
Mateusz Morawiecki considera que "promessas de motivação política podem estar por trás do mecanismo de ataque a qualquer país". "Hoje tememos ser atacados de forma injustificada, mas é claro que no futuro qualquer país, Portugal ou Itália, Espanha, Grécia, França, Áustria, República Checa, Hungria e outros também poderão ser atacados", afirmou, prometendo prolongar o braço-de-ferro sobre o mecanismo do Estado de direito.
Antes da discussão das perspetivas financeiras, os 27 abordaram a agenda climática e realizaram um debate sobre a pandemia, prevendo-se a aprovação de conclusões a destacar os "desenvolvimentos positivos" em matéria de vacinas. Por outro lado, pretende expressar a constatação de que "a pandemia ainda não acabou".
Bruxelas quer ver a política de testes de despistagem da covid-19 coordenada a nível europeu, com o reconhecimento mútuo de resultados, com impacto no levantamento de restrições de viagens, "quando a situação epidemiológica o permitir".
Mais tarde, já à mesa do jantar, os governantes voltaram ao debate sobre alterações climáticas. As propostas em discussão resultaram num texto de conclusões "equilibrado, mas a precisar de mais debate", apurou o DN. Charles Michel acredita que "um acordo sobre a meta de redução de emissões de pelo menos 55% até 2030 está ao alcance". Num documento de trabalho, a referência de partida é o "ano de 1990".
O Conselho Europeu tinha ainda previsto uma discussão "aprofundada" sobre a Turquia, numa altura em que Grécia e Chipre pedem sanções contra Ancara, devido às constantes violações das águas sob a sua jurisdição nacional.
Mas, a medida não é consensual, e esperava-se que este fosse o tópico mais demorado da discussão. O primeiro-ministro, António Costa, que em poucos dias assumirá a presidência rotativa da União Europeia, defendeu que os "conflitos devem ser resolvidos de uma forma pacífica e dialogada".
Costa lançou o apelo na sede da Aliança Atlântica, onde esteve reunido com o secretário-geral, Jens Stoltenberg, para discutir também este tema.
"Os conflitos devem ser resolvidos de uma forma pacífica e dialogada, sem sanções, e sem qualquer tipo de confrontação", afirmou António Costa, afirmando porém que está ao lado dos dois países europeus com "total solidariedade com Chipre e com a Grécia, e com o direito que têm a ver integralmente preservada a integridade do seu território e as suas águas territoriais".
A presidente da Comissão Europeia, que ontem jantou com o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, chegou à cimeira a pedir que houvesse debate sobre o Brexit, apesar de o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, ter dito que "não se pretende discutir o assunto".
Mas, com a nova meta de 72 horas para Londres e Bruxelas chegarem a um acordo sobre a relação comercial futura, o tema foi incluído na agenda. Durante a cimeira, Boris Johnson afirmou em Londres que "há forte possibilidade de não haver acordo".