Que força ainda é essa da música de intervenção?

Na próxima quinta-feira passam 30 anos sobre a morte de José Afonso, exemplo maior de um músico que nunca desistiu de mudar a sociedade. No Portugal democrático de 2017 ainda existe música de intervenção? Onde está e do que fala?
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Em 1963, num clima político sufocante e num momento em que passava por dificuldades materiais, José Afonso escreveu a letra de Os Vampiros, um tema de revolta contra o poder e contra o capitalismo, contra aqueles que "vêm em bandos com pés de veludo, chupar o sangue fresco da manada". E nem precisava dizer mais para que todos percebessem quem eram aqueles que "comem tudo".

Em 2012, o rapper Chullage pegou nas palavras (e na voz) de Zeca para fazer Eles Comem Tudo (do álbum Rapressão). Começa assim: "E a finança enche a pança com o aval da liderança, Despedimentos em vez de aumentos são os rumos da mudança, Especuladores, ladrões de ofício, grandes salários e benefícios, Bebem o fruto do nosso suor e depois pedem-nos sacrifícios."

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Tantos anos depois, a mesma revolta. Palavras diferentes com um sentido semelhante. Não é por acaso que Chullage sampla José Afonso e que também usa a voz de Luísa Basto em Já Não Dá ou do GAC em Suplício de Estrangeiros e Fronteiras. "José Afonso, José Mário Branco e Fausto foram e são os músicos portugueses com que faço clique", admite o rapper, que admira o modo como estes músicos "cuspiam fogo neste sistema organizado da exploração humana". O racismo, a discriminação, as discrepâncias sociais são os temas que dominam as canções de Chullage que, apesar de tudo, não tem a certeza se a expressão "música de intervenção" será a mais indicada para definir aquilo que faz. E recorda que José Mário Branco uma vez, lhe disse que era "um músico de protesto". Talvez essa seja a expressão mais adequada. "Toda a música intervém, mesmo aquela mais comercial, que vende os ideais consumistas e capitalistas, é política. É o altifalante deste regime." Chullage protesta, é o que ele faz. Contra o que ele acha que está errado. "Os muros sobem por toda a parte, inclusive na cabeça e no coração das pessoas. A violência sobe de tom. A guerra instalou-se. Cabe-me não me conformar, escrever sobre isso."

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Protestar. 30 anos depois da morte de José Afonso, fomos à procura desse protesto em forma de música. Do que é ou do que pode ser a música de intervenção no Portugal democrático de 2017. "José Afonso acreditava que a música tinha um papel transformador, que era essa a sua função enquanto músico", lembra Rui Miguel Abreu, crítico musical (Blitz, Antena 3) e especialista em hip hop. "Mesmo depois do 25 de abril, quando percebeu que a sociedade não seguia o rumo que ele teria querido, nunca desistiu." Os tempos hoje são outros, as sociedades são diferentes, os problemas são diferentes. Já não se protesta contra a guerra colonial, mas protesta-se contra as injustiças sociais, por exemplo. Rui Miguel Abreu dá um exemplo: no dia dos namorados, Jimmy P. apresentou a música Amar-te e Respeitar-te, integrada num projeto de combate à violência no namoro. "Esta é uma causa por que faz todo o sentido lutar hoje e isso é música de intervenção", explica.

Dar voz a quem não tem voz

"Música de intervenção hoje é música que veicula uma posição sobre os tópicos mais urgentes para as nossas sociedades. Numa era em que as indústrias alimentar e farmacêutica, a banca, as organizações do comércio, e quase todos os governo mundiais estão sob o controle das grandes corporações económicas, música de intervenção é aquela que assume uma posição de combate em relação a isto", diz Valete, o rapper de temas como Fim da Ditadura. "Palavras são balas", diz em Masturbação Mental. As palavras têm assim tanto poder? Ele acha que "até têm mais poder do que antes. No entanto, as pessoas estão distraídas com as redes sociais e afins e o consumo de informação é efémero e pouco aprofundado. E a música pode desempenhar esse papel de informar as pessoas de uma forma profunda."

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Boaventura de Sousa Santos chegou ao rap através dos seus estudos enquanto sociólogo: "No nosso tempo, em que os mecanismo de protesto com vista à transformação social têm vindo a perder ímpeto e até diversidade, fui à procura onde é que poderia encontrar esse protesto". Foi ver os movimentos dos indignados, as manifestações de rua, os gritos de protesto. E ficou fascinado quando, há uns 15 anos, descobriu o poder do rap e da spoken word - Primeiro, entre os norte-americanos, com nomes como Kannye West e Eminem, depois o rap brasileiro e só então estabeleceu ligações com os rappers portugueses. Há dois anos, reuniu um grupo de rappers no projeto "Há Palavras que Nasceram para a Porrada", no qual participaram Chullage, Hezbollah, LBC e Capicua. "O rap português tem muitas semelhanças com a nossa canção de protesto dos anos 70. Não lhe chamamos assim mas é uma música de luta, é um grito. Ainda hoje, é um rap muito insurgente, não se deixou industrializar como aconteceu com Kannye West", explica o sociólogo.

Apesar de os temas serem diferentes dos abordados pelos cantores de intervenção de há 40 anos, Boaventura Sousa Santos considera que o rap "não deixa a esfera política mas amplia-a, não luta contra a ditadura política mas luta contra a ditadura nas relações sociais". Na sua opinião, são três os grandes alvos do rap nacional: o colonialismo ("a colonização não é só territorial, é social, tem a ver com o racismo e a discriminação"), o capitalismo (as desigualdades sociais e económicas, aqui um lado mais político) e o patriarcado (a discriminação sexual). "O que é mais notável no rap português é que mesmo quando a sua linguagem é mais radical, os rappers querem estabelecer elos com a sociedade."

Capicua acredita "que a música pode ser um contributo ou uma ferramenta para a mudanças das mentalidades e eventualmente do mundo". "Se eu não acreditasse nisso não faria a música que faço, não é?", lança a rapper que foge a todos os estereótipos associados ao género menos a este. Vê a música como "reportagem do que se passa ao nosso redor e das micro-histórias que muitas vezes estão escondidas." E explica: "Gosto muito da liberdade que o rap me dá de escrever sobre qualquer tema, sobre sapatilhas, sobre sexo, sobre rap, sobre política, sobre a morte, sobre a vida, sobre tudo. Essa liberdade faz com que eu utilize o rap para falar sobre aquilo que eu experiencio e a minha vivência não é só a emoção, é também aquilo que me preocupa, que vejo na vida dos outros ou no telejornal. É mais uma dimensão na minha vida. Não dá para separar a vida da política, tudo é político."

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Foi, assim, naturalmente, que as suas músicas começaram a falar do machismo, violência doméstica, da condição da mulher (como em Medusa, Alfazema, Mulher do Cacilheiro, Mão Pesada, por exemplo. O tema Maria Capaz inspirou a criação da plataforma feminista Capazes). E foi também assim que a ecologia e a alimentação se tornaram tema do seu último disco, Mão Verde. "É um tema que me interessa muito: tenho uma horta, tento comer bio, comer local, faço compostagem em casa para reduzir o lixo doméstico que produzo, na minha vida quotidiana esses temas tinham uma importância que eu achei que fazia sentido passá-los para a música." E não será isto também música de intervenção, na medida em que procura mudar mentalidades e atitudes? "Claro que sim."

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Falar de nós

Mas é preciso dizer que nem todo o hip hop é reivindicativo e nem tudo o que é reivindicativo é hip hop. Rui Miguel Abreu sublinha que "o hip hop tem muitas gavetas, tanto pode falar de racismo como da cor do céu". E, por outro lado,"há muita gente furiosa no rap como há muita gente furiosa no rock ou no fado". Mitó Mendes e Sandra Baptista, As Señoritas (e antes disso membros da Naifa) também afirmam que existe música de intervenção "em todos os géneros. Basta ouvir para ter essa consciência." As Señoritas admitem a influência da "canção de autor dos anos 70": "Sempre admirámos o poder e a força deste tipo de música, e embora os tempos tenham mudado, é essa energia que procuramos quando compomos. As palavras cantadas irem diretas à consciência de quem as ouve." Embora nas suas canções não abordem tão objetivamente os problemas sociais, as Señoritas têm uma mensagem de afirmação dos direitos da mulher, de defesa da liberdade individual, de revolta pelas injustiças: "Também nos consideramos músicas de intervenção. Tentamos abordar temas que tragam questões à consciência de quem as ouve, e que possam motivar a concretizar mudanças".

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Em 2011, num concerto no Coliseu dos Recreios, os Deolinda apresentaram o tema Parva que sou. No dia seguinte, o vídeo já estava no YouTube e não foi preciso muito para que aquela música que falava da "geração sem remuneração" se tornasse um hino para muitos dos jovens que, tal como dizia a letra, tinham formação mas mal conseguiam um estágio, quando mais um emprego e continuavam a viver em casa dos pais. "Que mundo tão parvo onde para ser escravo é preciso estudar." "A letra surgiu de uma lista de problemas que fui identificando em alguém da nossa geração. A minha intenção era juntar algumas questões sociais e, desse modo, fazer um retrato geracional do momento", explica Pedro da Silva Martins, dos Deolinda. "Queria que aquela personagem tomasse a consciência daqueles problemas específicos e decidisse mudar. O ponto para mim era aquele "murro" na mesa, de um "não posso mais". Com o tempo, esse gesto ou tomada de posição, transfigurou-se numa tomada de consciência política de alguém que desperta para a ideia que tem de fazer qualquer coisa por si e pelos outros."

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O impacto daquela música foi muito além do que os seus autores imaginaram e o tema foi um dos hinos do movimento do 12 de março que nesse ano levou mais de 200 mil pessoas para a rua para lutar contra a precariedade. "É uma opção artística, mas também política, escolher esse olhar crítico ou não", diz Pedro da Silva Martins. "Quando a canção o pede e se tem algo pertinente ou inquietante a apontar, tem de ser feita! Às vezes não responder de forma critica e consciente é também uma resposta ao tempo que se vive. A música é detonada pelo seu tempo e pode fazer muitos estragos." As palavras não são armas mas podem ser usadas como tal.

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