O primeiro filme de Woody Allen como realizador - O Inimigo Público (título original: Take the Money and Run), retrato de um ladrão de bancos em tom de comédia surreal - surgiu em 1969. Apesar do seu impacto crítico e comercial, outro título dirigido, não por ele, mas sim por Herbert Ross, seria tão ou mais decisivo na construção da sua persona artística e também na consolidação da sua popularidade: chama-se Play It Again, Sam e chegou às salas de cinema dos EUA há meio século, mais precisamente a 4 de maio de 1972 (a estreia portuguesa ocorreria em dezembro do mesmo ano)..Entre nós lançado como O Grande Conquistador, Play It Again, Sam tem como base a peça homónima do próprio Woody Allen, estreada na Broadway, no lendário Broadhurst Theatre, em 1969. Na sua lógica de comédia romântica, a peça coloca em cena Allan Felix, um crítico de cinema neurótico, infinitamente inseguro, assombrado pela memória de Humphrey Bogart. De tal modo assim é que as suas relações com Linda Christie vão sendo pontuadas pela "presença" do próprio Bogart, conselheiro amoroso que não passa, afinal, de um fantasma cinéfilo que com ele dialoga, mas mais ninguém vê....Particularmente importante para o "grande conquistador" que Felix não é, Bogart surge como um bizarro mensageiro daquele que era e, por certo, continua a ser, o seu filme mais famoso: Casablanca (1942), o mítico romance em que contracena com Ingrid Bergman, tendo como pano de fundo as convulsões da Segunda Guerra Mundial no Norte do continente africano - como se entre Bogart e Felix passasse a herança da idade de ouro de Hollywood e da sua impossível repetição..Na ficha artística do filme surgem alguns dos atores que integraram o elenco da primeira temporada teatral de Play It Again, Sam, incluindo, respetivamente como Felix e Linda, Woody Allen e Diane Keaton (conheceram-se, aliás, durante o casting da peça). Outro dos "repetentes" é Jerry Lacy, no papel de Bogart..As referências a Casablanca estão longe de ser uma mera curiosidade, já que a memória do filme desempenha uma função decisiva na saga romântica de Felix. De facto, ele sabe de cor os diálogos, em especial da emblemática cena final de despedida entre Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Através desses diálogos, um capítulo da história de Hollywood renasce de forma insólita (30 anos depois de Casablanca), refazendo a paixão cinéfila com um toque de humor subtil e desconcertante. Ou, como se escrevia num dos cartazes da época: "De dia, ele é Woody Allen. Mas quando cai a noite e nasce a Lua, Humphrey Bogart volta a atacar.".Através de uma perversa ironia, o filme escrito e interpretado por Woody Allen acabou por favorecer um erro frequente nas evocações de Casablanca. Assim, a frase do título - Play it again, Sam - remete para a cena em que Ilsa (Ingrid Bergman) pede ao pianista Sam (Dooley Wilson) que volte a tocar As Time Goes By, a canção que evoca a paixão vivida com Rick (Humphrey Bogart). Na verdade, ela não diz "Play it again, Sam", mas sim "Play it, Sam". Dir-se-ia que a cinefilia é também essa paixão de permanente reescrita das memórias..Play It Again, Sam/O Grande Conquistador pertence a um período charneira da história de Hollywood. Viviam-se os contrastes, por vezes as contradições, entre a glória dos clássicos e a emergência, não apenas de uma nova geração de criadores, mas também de um sistema de produção que, em última instância, se revelaria bem diferente do tradicional studio system (recorde-se que Tubarão, o primeiro blockbuster, tem data de 1975)..Alguns eventos da produção cinematográfica de 1972 são reveladores dessa diversidade, a começar pelo facto de ter sido esse o ano da estreia cinematográfica de Jodie Foster (contava nove anos) em Napoleão e Samantha, uma comédia familiar com chancela dos estúdios Disney. Numa dimensão bem diferente, o trabalho de alguns autores começava a refletir os traumas da guerra do Vietname, sendo Os Visitantes, de Elia Kazan, um caso incontornável de tal dinâmica artística e política - também no seu primeiro papel em cinema, aí surgia James Woods..Nos Óscares referentes a 1972 (atribuídos em 1973), as três estatuetas douradas, incluindo a de melhor filme do ano, ganhas por O Padrinho, de Francis Ford Coppola, ficaram como sinal de uma renovação paradoxal: era a consagração de um modelo dramático com importantes raízes no classicismo de Hollywood e, ao mesmo tempo, um sinal da emergência de uma geração (Coppola, Scorsese, De Palma, etc.) que, na prática, iria questionar de alto a baixo os modelos tradicionais do cinema americano..Nesta perspetiva, talvez se possa dizer que Felix, o crítico que vive "apenas" através dos filmes e da sua mitologia, é um dos derradeiros sobreviventes da idade clássica. A sua nostalgia nasce do desencanto com que descobre a impossibilidade de refazer as aventuras de Humphrey Bogart e seus semelhantes. Daí também a simpatia com que acolhemos a sua neurose..dnot@dn.pt