Lviv, Ucrânia. A cidade fervilha. Nos dois últimos dias, os termómetros não desceram a zero. Na altura mais quente chegaram aos 14 graus. É primavera na Ucrânia. Aliás, pelo calendário, o inverno acabou a 1 de março. Mas os sinais da chegada da nova estação demoraram a chegar. Segunda e terça-feira, o centro da cidade encheu-se de gente. Não são só os habituais residentes, mas muitos ucranianos que vieram de outras paragens onde há, nesta altura, combates violentos. Aqui, em Lviv, encontram abrigo e, nesta semana, também um sol radioso, um céu limpo, uma atmosfera de alguma normalidade..O ministro da Economia, os conselheiros do presidente e as autoridades fizeram, na última semana, um apelo: quem puder, que vá trabalhar. A guerra "custa dinheiro", a economia não pode parar e é preciso manter empresas e empregos. Por isso, "quem tiver trabalho deve ir trabalhar, quem não tiver será voluntário". Lviv levou o recado à letra. Na quarta-feira houve restaurantes que voltaram a funcionar, centros comerciais cheios de gente, transito caótico. Buzinadelas de impaciência. Filas na baixa..O primeiro sinal desta retoma da vida "normal", de uma resistência que passa, apenas, por sair de casa e ir trabalhar, notei-o quando vi um homem a lavar a montra da loja. Depois, num olhar mais atento, percebi que, uma após outra, muitas lojas da avenida principal da cidade estavam já a funcionar. Não apenas restaurantes e cafés, mas lojas de óculos, sapatos, roupa, perfumarias. Drogarias. Espaços comerciais que não são de primeira necessidade. Portas abertas, música no interior, uns retoques na montra, ainda há saldos de inverno, a primavera só apareceu por dois dias..Até o senhor do quiosque de souvenirs, tabaco e jornais voltou ao seu posto, diante do edifício da Ópera. No fim do dia, leva o negócio, que tem rodas, para casa. Amanhã, há de voltar. E foi mesmo diante dele que a Orquestra Sinfónica de Lviv deu um concerto, ali na praça, ao frio. Os músicos não traziam fraques, laços e camisas impecavelmente engomadas, como fariam em tempo de paz. Vieram eles e os instrumentos, e a música ecoou no centro, encheu o ar, tornou mais leve a tarde. Escolheram peças de um compositor ucraniano do princípio do século passado. A melodia conta a história do povo da Ucrânia e canta os feitos de uma população corajosa, guerreira, resiliente. Música que inspira, que encoraja, que recorda um passado de ocupações, guerras, conflitos e resiliência..Larissa, tem 62 anos, é professora primária, pede desculpa pelo seu inglês (junta apenas umas palavras). "O meu filho está ali a tocar", aponta, "é aquele, do contrabaixo". Acena-lhe, ele devolve-lhe o gesto com um sorriso - está a tocar. Ela, orgulhosa, sorridente, diz: "A música é a vida dele, o amor da vida dele." Larissa não consegue encontrar mais palavras. Lamenta. Tem muito para dizer, insiste que fale com o filho, ele sabe falar inglês. "Fico muito feliz por ver a minha mãe aqui. Sem medo das sirenes ou dos bombardeamentos." É um sinal de resistência. É disso que fala a música, diz o contrabaixo, Artem Kamanov. "Se nos mantivermos unidos, somos capazes de coisas extraordinárias." A mãe vai acenando que sim. Não consegue expressar-se, mas entende o que diz o filho. Artem, 34 anos, pede ajuda: "Por favor, fechem os céus, só assim conseguiremos manter Lviv e outras cidades a salvo dos bombardeamentos." Ele e a orquestra há muito que não se encontravam para tocar. A digressão pela Europa foi adiada, eles querem voltar a poder tocar em todo o lado. A música sobrevive às guerras, daqui a uns anos algum compositor vai transformar em pautas os dias que hoje se vivem. Larissa quer uma fotografia, para recordação. "Muito obrigada por estarem aqui a mostrar o que se passa", diz ela, grata, sorridente, otimista. "Não nos escondemos, estamos aqui, vamos continuar aqui", resume Artem. Guarda o contrabaixo, dá a mão à mãe, acenam, vão tomar chá..Lviv vive, e "só" isso, por mais normal que pareça, é, em si, um ato de coragem.