Joe Biden foi declarado vencedor das eleições nos Estados Unidos no dia 7 de novembro. Já lá vão duas semanas de um triste espetáculo de mau perder por parte do atual presidente Donald Trump, que passa os dias entre tacadas de golfe e tweets histriónicos a invocar fraude e o diabo a quatro..Ora é precisamente o diabo, sob várias formas, que persegue Betty Boop num filme criado pelo produtor musical Dan Dalton em 1980. O enredo mostra a bonequinha pin-up numa sequência de empregos - desde lavar pratos num restaurante até chegar a Hollywood, passando pela Broadway e pelo circo - a preparar terreno de popularidade para se candidatar à presidência. Ao longo do caminho, é isto: o diabo aparece sempre para tentar impedir o feito e reivindicar a sua alma.."Se queres ser presidente, tens que ser forte", diz o avô da candidata sexy. E também aqui nos lembramos de Trump e da sua ânsia de parecer rijo que nem um pêro diante dos americanos, depois de ter apanhado o vírus que tanto menosprezava... e continua a menosprezar à grande. Sim, em Betty Boop for President (ou Hurray for Betty Boop) - lançado em formato vídeo a 21 de novembro de 1980 - a heroína enquadra-se no perfil do candidato republicano derrotado este ano. Porém, ela é duplamente vencedora. A saber, já numa curta-metragem homónima de 1932, enquanto fazia beicinho e prometia dinheiro aos seus apoiantes, arrumava a um canto o outro candidato, Mr. Nobody, que, por sua vez, prometia cuidar e proteger todos os americanos. Onde é que já ouvimos isto?.O paralelismo com as recentes eleições é tão curioso que só podemos olhar para a personagem de Mr. Nodoby (Sr. Ninguém) como a velha democracia representada pelo "salvador" da decência Joe Biden, que agora vingou nas margens da ficção. Betty Boop é uma espécie de encarnação foliona do sonho americano, que lança modas, distribui dinheiro pelas ruas e oferece gelado às criancinhas - a certa altura até o seu rosto ganha feições de homem gordo de charuto no canto da boca, para sublinhar a perversão da caricatura. Mas o que conta realmente é isto: ela é uma mulher a querer ser presidente dos EUA contra todos os preconceitos, e semeou no imaginário americano a possibilidade da vitória feminina. A primeira vice eleita, Kamala Harris, agradece a dica.."Um largo rosto de bebé com olhos grandes e o nariz como um botão, emoldurado por um penteado rigoroso, com um corpo muito pequeno do qual talvez a principal característica seja o busto, mais autoconfiante do que se possa imaginar." A descrição forense de Betty Boop num caso de tribunal em 1934 é a essência daquilo a que o Código Hays (policiamento da moralidade) tinha horror. Um desenho animado com curvas pronunciadas, uma liga à vista na perna esquerda e lábios que proferem o sensual tique jazzístico "boop-oop-a-doop"?.Criação de Max Fleischer, que lhe deu vida em 1930 (nove décadas completadas em agosto), Betty acabou por ser recomposta na aparência para simular mais recato perante os olhares puritanos. Basicamente resolveu-se uma questão de decote e saia curta. Mas o símbolo sexual, o ícone feminista, a inconfundível imagem pin-up, cuja expressão havia sido inspirada na cantora Helen Kane, ficaram intactos. É no percurso desse mito animado, desde o nascimento até à capa da revista The New Yorker, em novembro de 2017 - altura em que estalou o processo Weinstein - que se centra Betty Boop for Ever (2019), um documentário realizado por Claire Duguet para o canal Arte..Não será por acaso que Betty Boop combina, em particular, com o movimento #MeToo. Numa curta-metragem de 1933, Betty Boop"s Big Boss, monta-se todo um aparato divertido, mas sério, à volta do assédio sexual: no auge da Grande Depressão, Betty depara-se com um anúncio de emprego, tenta a sua sorte, sem excluir a evidência dos dotes físicos, e acaba não só contratada como assediada pelo patrão... Enfim, nada que não se resolva com um telefonema para todas as esquadras da cidade e a mobilização do exército e da marinha. Uma boa heroína feminista não faz por menos. .Em 1939, Betty Boop chegou a ser proibida de aparecer no grande ecrã. Um perigo, mesmo que a preto e branco! Na década de 1960, novos desenhos tentaram dar continuidade à carreira da estrela mais voluptuosa da Paramount, o problema é que já não havia mercado para a animação a preto e branco. Ainda se enviou o material para a Coreia do Sul, a fim de os desenhos serem pintados à mão frame a frame, mas a qualidade escassa do resultado deitou por terra a hipótese de venda à televisão. Foi nesse contexto que surgiu Betty Boop for President. Dan Dalton pegou em cenas de trinta e cinco desenhos animados coloridos pelos coreanos e deu-lhes uma continuação, para associar às eleições de 1976 (Jimmy Carter/Gerald Ford). O filme sofreu um adiamento até à campanha seguinte, da qual saiu vencedor Ronald Reagan, um republicano decente.