"E o frigorífico? Está bem abastecido por enquanto?", ouve Rosimara Francisco dos Santos, moradora da Comunidade da Paz. "Geladeira? Eu não tenho geladeira", responde ela, usando o termo local, ao lado do marido, dos seis filhos e de uma sobrinha, com quem partilha uma casa de três divisões - sala, casa de banho e uma cozinha que à noite se transforma em quarto de todos eles..A Comunidade da Paz, favela no centro de Ribeirão Preto, cidade a 500 quilómetros de São Paulo, capital do estado homónimo, de longe o mais rico do Brasil, abriga cerca de 370 famílias, ou 1700 pessoas, 300 das quais crianças, todas mais ou menos com a mesma condição económica de Rosimara.."Chegamos aqui há 18 anos para fugir da miséria da Paraíba, o nosso estado", conta ao DN. Ela e o marido estão, para já, sem trabalho. "Vivemos de bicos [trabalhos temporários] e da ajuda do povo. Perdemos acesso ao Bolsa Família [programa estatal de transferência de salário] quando arrumamos empregos mas agora estamos a correr atrás desses tais 600 reais [pouco mais de cem euros] que o governo está dando", continua Rosimara, referindo-se ao auxílio estatal aos trabalhadores informais durante a pandemia..A pandemia, entretanto, está definitivamente à porta das cerca de 6500 favelas do Brasil, onde vivem perto de 12 milhões de brasileiros, mais ou menos 6% da população total..Em entrevista recente ao DN, Tereza Campello, ministra do desenvolvimento social de Dilma Rousseff, disse que quando o coronavírus ultrapassasse essa porta o país enfrentaria uma tragédia. "Será um genocídio. Quando se diz para os idosos se recolherem, esquece-se que os idosos pobres não têm cuidadores, não têm áreas isoladas nas suas casas, não têm alimentação especial. Quando se diz que isto é uma opção individual de cada um e que as pessoas não podem sair de casa, como é que se mantém em casas mínimas um monte de gente? As crianças não vão para a rua? Claro que vão para a rua. Na China, o vírus foi quatro vezes mais fatal nas áreas pobres do que nas ricas ou das classes médias. E no Brasil, dentro de uma só cidade, há desigualdades brutais.".A porta já foi ultrapassada na Rocinha, a maior favela do Rio de Janeiro e do país, onde morreram duas pessoas por covid-19 na semana passada, segundo a prefeitura carioca. Três outras comunidades carentes da cidade - Vigário Geral, Maré e Manguinhos - também registam os primeiros óbitos..Susto na Comunidade da Paz.Na Comunidade da Paz, em Ribeirão Preto, vive-se portanto sob o temor da chegada da pandemia. A 24 de março, Maria Aparecida Gonçalves, de 51 anos, que mora a menos de cem metros de Rosimara, foi levada a um posto de saúde com suspeita de pneumonia. Como os remédios ministrados não surtiram efeito, ela voltou ao posto três dias depois mas não resistiu: morreu, segundo o certificado de óbito, por causa de insuficiências respiratórias e talvez de covid-19.."Os familiares agora estão confinados lá naquela casinha de madeira azul, está vendo? Falo com eles várias vezes ao dia mas por aqui, ó...", diz o líder da comunidade Edson Borges, conhecido como Cebola, enquanto aponta para o contacto de WhatsApp da irmã da vítima. Dias mais tarde, para descanso - por enquanto - da Comunidade da Paz, o hospital revelou que dona Aparecida testou negativo para o novo coronavírus..Cebola aceita fazer uma digressão, ao lado do DN, pelo coração da comunidade, partindo da casa de dona Rosimara e família e terminando na cozinha comunitária, onde são preparados jantares diários para os habitantes da favela graças a doações de empresas e de particulares..O próprio Cebola, munido de máscara e respeitando o distanciamento social, revela medo de contágio. "Estou em seis grupos de risco simultâneos", destaca. "Tenho tensão alta, diabetes, obesidade, problema renal, problema respiratório e ainda doei a medula óssea ao meu irmão para o salvar de leucemia..."."Medo da economia? As pessoas aqui têm medo é da doença. Se uma epidemia destas vier a alastrar numa comunidade onde somos tão vulneráveis, vai ser uma catástrofe", diz ele, concordando com o diagnóstico de especialistas, como Tereza Campello. "Mas temos fé."."Aqui", diz ele a meio do caminho para a cozinha comunitária, "mora o Seu Divino, que tem de dormir sentado por causa de problemas respiratórios".."Será do tal corona", pergunta o homem, de cabelos brancos, a Cebola e ao DN. "Não, Seu Divino, não pode ser, Jesus não iria permitir", diz o líder comunitário. "Amém", responde Divino..Na comunidade, Jesus está - como não poderia deixar de ser - omnipresente. Seja no Ministério Igreja Pentecostal Ceifeiros da Última Hora, com sede na própria favela, seja noutras denominações evangélicas, com templos nos limites da região..Fé em Deus e em Cebola.Há fé em Deus mas também fé em Cebola, que funciona como uma espécie de chefe de governo local. Ele recebe pelo telemóvel informações de moradores com eventuais sintomas da doença, chama ambulâncias, contacta hospitais.."Somos nós, na liderança, que alertamos para os perigos, com base nas indicações diárias do [entretanto demitido] ministro da Saúde [Luiz Henrique Mandetta, rosto do governo federal na luta contra a pandemia mas em conflito constante de opinião com o presidente Jair Bolsonaro]".."Eu montei um grupo de monitoramento, temos um sistema, acho eu, bem enquadrado, e, pessoalmente, fico muito orgulhoso de ver uma rua destas, cheia de gente a circular num dia normal, praticamente deserta", afirma, enquanto aponta para a Rua Osvaldo Occe, que, apesar de ser em terra batida e repleta de barracos e casebres, é a artéria principal da favela.."A prefeitura da cidade? Não ajuda em nada. Só vem cá para massacrar, para fazer reintegrações de posse [quando proprietários expulsam moradores que ocupam imóveis vazios por precariedade]", queixa-se Cebola..Outro poder paralelo na Comunidade da Paz parece ser o Primeiro Comando da Capital, principal organização criminosa do Brasil, com sede em São Paulo e especialização em tráfico de droga, rebeliões penitenciárias, sequestros, assassinatos e assaltos, a julgar pelas repetidas inscrições "PCC" nas paredes da favela..No caminho para a cozinha comunitária não há comércio aberto. Nem a mercearia, nem o Bar do Inácio, com pequena mesa de snooker. Nada. Nem no campo de futebol relvado, ponto de encontro das crianças e dos jovens, se vê vivalma. O comércio, no entanto, não é o principal ganha-pão na favela. "A maioria é catadora de lixo", diz Cebola. "Mas, como os comerciantes, os pedreiros, os pintores estão sem trabalho, eles também vão catar lixo, o que faz que haja gente a mais a catar para lixo a menos."."É isso mesmo", diz em uníssono um casal que vive de recolher material reciclável. Ela, Salvelina, gaba-se de ter o nome mais lindo do mundo e acusa o marido, Eguinaldo, de ter o mais feio. "Nem Aguinaldo é, é Eguinaldo", ri-se..Eguinaldo não tem vergonha do nome. Nem medo do vírus. "Por ter fé no Deus todo-poderoso", diz o frequentador da Igreja Mundial do Poder de Deus, rival da dos Ceifeiros da Última Hora..A conversa com Salvelina e Eguinaldo é na sala de casa, em frente ao quarto onde dormem com os seis filhos. Chegaram de Remanso, na Bahia, a 800 km de Salvador, há quatro anos. Apesar das dificuldades, encontram em Ribeirão Preto mais oportunidades. Por isso vivem com esperança e boa disposição permanentes..O problema, tanto na Comunidade da Paz como noutros pontos do Brasil e do globo, é que se o covid-19 chegar não será a única preocupação. Apenas mais uma preocupação. "Por exemplo, aqui mesmo", diz Cebola, no meio do labirinto de ruelas com casas de lona, de madeira ou de tijolos a descoberto, "ontem um moleque jogou-se para cima do sofá, estava lá uma faca e foi perfurado". "Um desespero incrível, levei-o para o hospital mas, se já tivéssemos casos de corona, não sei se poderia ter tempo de ajudar.".Uma cozinha para todos.Entre as ajudas prestadas pela liderança da favela está a tal cozinha comunitária, destino final do tour..Cebola e equipa organizam as doações - as principais empresas da região enviam cestas básicas [cabazes de compras] - e cozinham os jantares para a comunidade.."Cerca de 95% da população da Comunidade da Paz janta as refeições que preparamos aqui, usamos uns dez a 12 panelões e fazemos a distribuição numa carrinha, o almoço é que não podemos dar se não esgota-se tudo numa semana, aí terão de ser eles por si.".Jaqueline Magalhães, uma das responsáveis pela cozinha, conta que "por jantar são preparados cerca de 35 quilos de arroz e mais ou menos 25 quilos de feijão".."O menu de hoje inclui arroz e feijão, mais beringela refogada e salada de chuchu", informa..A preparação começa logo às nove da manhã e dura até às 17.00. Todos os que cozinham, distribuem e limpam a cozinha são voluntários. "Porque dá muita satisfação ver a pessoa feliz, as crianças a deliciarem-se com a comida e ver toda a gente poder dormir de barriga cheia...", continua Jaqueline, que já faz voluntariados semelhantes a cada natal..Fabinho, 11 anos, filho mais velho de Rosimara, que seguiu de bicicleta o caminho de Cebola e da reportagem de sua casa até à cozinha comunitária, com a esperança de "ser entrevistado e aparecer na televisão" confirma. "A comida é boa sim", diz..De regresso ao lar, o garoto, fã do popular Corinthians, diz que, apesar de não ter álcool gel em casa, vai lavar as mãos direitinho e comer qualquer coisa até ao jantar. "A gente não tem geladeira mas a despensa ainda tem comida para um mês", garante.