Quando a armada inglesa obrigou a Grécia a pagar a dívida a um português

Foi no início de 1850 que os navios de guerra chegaram ao Pireu. Nada entrou ou saiu do porto grego até David Pacífico ter sido pago.
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Na historiografia britânica ficou conhecido como o "Don Pacífico Affair". E na memória dos gregos como um episódio de ultraje nacional. Resume-se assim: um ex-cônsul português, cuja casa em Atenas foi saqueada em 1847 por uma multidão antissemita e exigia uma indemnização, declarou-se cidadão britânico por ter nascido em Gibraltar e pediu apoio a Londres. A resposta do ministro dos Negócios Estrangeiros Palmerston foi a diplomacia da canhoneira e a armada inglesa surgiu ameaçadora junto ao porto do Pireu em janeiro de 1850. Após dois meses de bloqueio, a Grécia cedeu e pagou. E o judeu português David Pacífico, com as libras no bolso, partiu para a Grã-Bretanha. Morreria quatro anos depois.

O episódio vem contado em Modern Greece, um livro que acaba de sair da autoria de Stathis N. Kalyvas, um grego que é professor nos Estados Unidos. É também relembrado na propaganda via net do Aurora Dourada, o partido neonazi grego (6% dos votos, 17 deputados em 2015) que neste caso junta a aversão à União Europeia aos instintos antissemitas. E o mais curioso é que, quando uma missão da troika chegou a Atenas em janeiro de 2012 para aplicar o plano de austeridade, o diário britânico The Guardian também fez a analogia com o "caso Dom Pacífico", descrevendo a personagem em causa como "um judeu português que nunca pusera os pés nas ilhas britânicas".

Ora o que se sabe deste David Pacífico, aliás Dom Pacífico (Dom aqui é o título com que exigia ser tratado, como em D. José ou D. Pedro IV), é que tinha origens portuguesas, que nasceu em 1784 em Gibraltar, o território cedido aos ingleses no fim da Guerra da Sucessão espanhola, e que terá vivido no Algarve, em Lagos. Liberal convicto, teve problemas durante o reinado de D. Miguel, vendo os bens confiscados, mas com a derrota dos absolutistas em Portugal voltou a cair nas boas graças dos poderosos e acabou nomeado cônsul em Marrocos.

O passo seguinte na carreira, que não seria exclusivamente diplomática mas também de comerciante, foi em Atenas, capital de uma Grécia que em 1830 tinha conquistado a independência depois da guerra contra o Império Otomano, em que a ajuda britânica foi decisiva. Não só houve voluntários como o poeta Byron a combater (e a morrer) pela causa grega, como a ação da frota inglesa, aliada às francesa e russa, deu um golpe fatal aos turcos.

É a Jewish Encyclopedia que mais pormenores pessoais dá sobre Pacífico, inclusive as datas em que esteve ao serviço de Portugal em Marrocos e Atenas. Nesta última, onde chegou em 1837, deixou de ser cônsul em 1842. Mas a personagem surge também na biografia que Roy Jenkins dedicou a Gladstone, várias vezes primeiro-ministro britânico no século XIX. Afirma o historiador que Pacífico, embora nascido em Gibraltar, "adquiriu a nacionalidade portuguesa". E sobre o pedido de indemnização à Grécia, Jenkins fala de 31 mil libras (mais de um milhão a valores atuais), tendo acabado por receber muito menos.

Quanto a disputas por causa de dívidas, sabe-se que Pacífico, já depois de ter deixado de ser cônsul (demitido?), exigiu a Portugal também que lhe fossem reembolsadas despesas diversas. E há cartas do conde do Tojal, ministro dos Negócios Estrangeiros, nada abonatórias para o bom nome do português, entretanto dedicado aos negócios.

O saque da casa de Pacífico, que devia ser faustosa, ocorreu depois de as autoridades gregas terem proibido na Páscoa a tradicional queima da figura de Judas. Tinha sido um pedido dos Rothschild, grandes banqueiros judeus que financiavam a nova nação herdeira da civilização helénica. Mas um rumor atribuiu as culpas da proibição ao português. Outra versão contada põe Pacífico apenas como um defensor empolgado da proibição, o que teria irritado os atenienses, em grande maioria fervorosos cristãos ortodoxos.

Do ponto de vista internacional, o "caso Dom Pacífico" - parece um título de um livro de Le Carré - exibiu o poderio naval britânico e Londres ignorou os protestos franceses pela exagerada resposta a uma queixa privada. Na política britânica, houve também quem censurasse Palmerston na Câmara dos Lordes, mas os Comuns saíram em sua defesa. Para justificar o envio da armada, o ministro citou a máxima latina "Civis romanus sum". Na sua interpretação, ser cidadão britânico, como ser romano, dava direito a proteção do império fosse onde fosse e contra quem quer que fosse.

Não deixa de ser irónico, quando hoje se fala tanto da determinação alemã em cobrar a dívida grega, que a chantagem da armada inglesa há século e meio fosse feita sobre o governo de Otão I, o bávaro que as potências europeias escolheram para reinar sobre a Grécia moderna.

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