Maria terminou o quinto ano com média de cinco valores, o que lhe valeu um diploma de mérito. Recebeu a distinção há alguns dias, numa cerimónia organizada pela escola, que contou com a presença da família. A mãe, Patrícia, não esconde o orgulho de ver o esforço da filha reconhecido, mas, por outro lado, olha com alguma indignação para esta dinâmica de reconhecimento dos alunos com base nas notas. "É injusto para algumas crianças. Não acho certo que alguns alunos se sintam inferiorizados", diz ao DN, destacando que apenas uma minoria recebeu diplomas (de mérito académico, desportivo e social)..Enquanto professora do primeiro ciclo numa escola do distrito de Aveiro, Patrícia sabe que há muitas famílias que não têm "possibilidades ou disposição" para ajudar os filhos a estudar. "Eu prescindo de muito do meu tempo para ajudar a minha filha. Estou sempre em cima dela. Há crianças que não precisam de trabalhar muito, mas a minha filha precisa", afirma. Aqueles que não têm acompanhamento são muitas vezes aqueles que não atingem as notas máximas e, consequentemente, que não recebem distinções. "É muito injusto.".Honra. Mérito. Excelência. São várias as designações usadas para as distinções dos alunos nas escolas públicas portuguesas, onde são criados quadros e entregues diplomas para premiar os que têm as médias mais altas. A prática, que é cada vez mais comum a todos os níveis de ensino, está longe de reunir consenso. Dos diretores de agrupamentos aos representantes dos pais, é reconhecida a necessidade de repensar o modelo que vigora na maioria dos estabelecimentos de ensino em Portugal. E há mesmo quem defenda o fim dos quadros de honra e diplomas de mérito..Ao estudar este fenómeno, Leonor Torres, coordenadora do projeto A Excelência Académica na Escola Pública(feito entre 2013 e 2016), ficou surpreendida com os resultados: "Cerca de 95% das escolas secundárias aderiram ao ritual do quadro de excelência, de premiação dos alunos com resultados acima dos 17,5." Uma "percentagem elevadíssima", que "espantou" a equipa coordenada pela professora do Instituto de Educação da Universidade do Minho (IE-UM)..Nas últimas duas décadas, houve uma "expansão e um alargamento do ritual a todos os níveis de ensino, até no pré-escolar". Atualmente, avança a socióloga, "temos praticamente todo o panorama educativo e escolar a praticar estes rituais, sem grande sentido crítico". Embora nos documentos orientadores da escola, nomeadamente regulamentos internos, estejam previstas distinções ora centradas no mérito (média superior a 4,5 no ensino básico e a 17,5 no secundário) ora nos valores e competências de cidadania, não é isso que geralmente acontece: "Quando analisamos as práticas, detetamos uma contradição: o que é implementado e divulgado para toda a comunidade é uma distinção sobretudo no mérito académico, nas médias que os alunos têm.".Um dos problemas destes rituais é que acentuam as desigualdades, como revela o perfil sociográfico dos alunos excelentes: "A grande maioria provém de famílias de estratos socioculturais médios e altos. 40% dos alunos frequentam explicações particulares fora da escola." Desta, forma quem fica excluído das distinções "são os alunos que provêm de famílias com poucos recursos". Essa é, segundo a investigadora, uma das razões que leva "a problematizar a pertinência" destas práticas..Os quadros de honra já existiam antes do 25 de Abril, mas foram extintos "com a democratização da escola pública". Estando previstos numa legislação "muito antiga", "foram retomados quando as escolas começaram a entrar numa arena competitiva bastante forte, por via da publicação dos rankings e dos resultados da avaliação externa". Segundo a socióloga, "há um clima político e educacional, que leva a escola a ostentar que tem os melhores alunos, que tem 15% ou 20% distinguidos como sendo os melhores". Criou-se, na opinião da investigadora, uma espécie de "estratégia de marketing" para atrair famílias e mais alunos..Dentro da equipa que conduziu a investigação, as opiniões dividem-se: "Há colegas que rejeitam [estes rituais] porque consideram que a escola já classifica e hierarquiza em demasia." E há outro grupo, onde a doutorada em Educação se inclui, "que acha que as premiações podem fazer sentido, desde que alargados os critérios a outras formas de olhar a educação, que não só pela métrica do cognitivo". Refere-se à valorização "de outros méritos e excelências mais voltadas para as competências artísticas, estéticas, culturais, entre outras". Desta forma, frisa, "democratizávamos um pouco mais esta política de atribuição de prémios"..Diretores pedem reflexão.Para Filinto Lima, diretor da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), é necessária reflexão nas escolas. Ao DN, reconhece que "é cada vez mais redutor" ter quadros em que só se tem em conta a média, notas, níveis e aprendizagem dos alunos". E questiona: "Porque é que um aluno que tem a vida complicada em casa, sem sítio para estudar, que tem três, quatros e até cincos, não pode ter acesso ao quadro de honra? É muito fácil para um aluno que tem um bom suporte familiar, com acesso a material didático, ter quatros e cincos. As escolas devem refletir sobre isto. Devem refletir se as notas chegam para ter acesso ao quadro de honra.".No agrupamento que dirige, em Gaia, existe o quadro de honra e o "quadro da geração fantástica". Este último premeia os alunos "pelas atitudes cívicas, no âmbito da cidadania", pelo que é aberto a todos, mas o primeiro tem em conta apenas os resultados académicos dos estudantes. "Estou a fazer uma autocrítica. Cada comunidade deve apreciar se nos critérios de acesso deve ter em conta as condições socioeconómicas dos alunos", frisa, adiantando que esta é uma questão que irá debater no conselho pedagógico..Com o modelo atual, critica Filinto Lima, estamos "a esquecer alunos que têm dificuldades e que deviam ser premiados". Tal como os alunos com necessidades educativas especiais (NEE) - "há autênticos heróis nas escolas". Destacando que estas distinções são "incentivos ao trabalho e ao estudo", o presidente da ANDAEP, que também critica os rankings, assume que deveriam "ter critérios mais latos". "Não queremos que seja um quadro de injustiça. Podem estar a criar-se injustiças para os que se esforçam e dão o litro.".Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares, tem uma opinião semelhante: "O modelo nacional prevê a valorização dos alunos que em termos de resultados são excecionais, mas não podemos esquecer que há outros que não têm resultados excecionais, mas têm um esforço excecional." Ressalvando que é importante "valorizar o esforço e o trabalho dos alunos e indicar alguns como bons exemplos", lembra que há outros que, "com muito mais esforço, não conseguem atingir as metas"..Ao DN, Manuel Pereira reconhece que "há receio de estar a valorizar alunos que têm famílias funcionais, com todos os apoios do mundo, em detrimento de outros que conseguem resultados menos bons, mas não têm apoio nenhum". Na opinião deste representante, "cada escola deve ter autonomia para tomar decisões nesta área e valorizar em quadros de mérito, excelência ou outros, todos os alunos que são bons exemplos em termos de trabalho, consigam ou não atingir a média máxima". Na escola que dirige, em Cinfães, há um quadro onde são valorizados os resultados e outro onde é premiada "a dedicação, o esforço, o empenho e a intervenção na comunidade".."É algo que devia deixar de existir".Entre as vozes mais críticas, há quem considere que os quadros de honra e diplomas deviam ser abolidos. "É um tema que há muito tempo considero que está a mais no ensino. É algo que não devia mesmo existir", afirma Vera Silva, pediatra, que recentemente escreveu um artigo para o blogue Com Regras sobre este tema. Na opinião da investigadora em Ciências da Cognição e da Linguagem do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, "não é isso que vai fazer que os alunos tenham melhores notas, sobretudo nos mais novos"..Para a pediatra, estas distinções "não estimulam o estudo, mas a competitividade", quando as crianças deviam era ter tempo "para brincar". Por outro lado, estes diplomas "acabam por ser para os pais, não para elas". Quem não consegue atingir as médias para os receber, "sente-se desconfortável, com baixa autoestima e de parte"..Vera Silva critica, ainda, a forma como o ritual está implementado, nomeadamente o facto de só os alunos premiados serem convidados para a cerimónia de entrega dos diplomas e de os estudantes terem de escolher um familiar para assistir ao evento. "Na maioria dos casos, não podem ir todos os familiares. Têm de decidir quem levam", critica..Da forma como está implementado, este sistema de prémios "é apenas uma massagem ao ego". "Se é para ser, que seja para todos. Todas as crianças deviam receber um diploma no final do ano a atestar que terminaram o ano", sugere..E os diplomas que premeiam outros comportamentos? "Não devia haver diplomas de nada. Eu não fico melhor pessoa por me diplomar em melhor amigo ou na pessoa mais simpática", diz. Por vezes, lembra, há processos dramáticos na vida das crianças, que fazem que fiquem mais agressivas, menos empáticas ou mais acanhadas. Além disso, conclui, "muitas vezes as circunstâncias da escola não são as melhores". "Se a criança não recebe dos colegas ou dos professores, não dá de volta", sublinha..Reconhecer todos era o ideal.Jorge Ascensão, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), também defende que "o ideal era que, no final de cada ano, pudéssemos reconhecer e felicitar todos os alunos pelo esforço que fizeram. Era sinal que a escola era inclusiva. Todos os alunos têm capacidade de ter alguma coisa boa"..Embora considere que o reconhecimento do mérito é positivo, o representante dos pais teme "que se esteja a negligenciar aqueles [alunos] que até se esforçam, mas não têm as mesmas oportunidades, recursos e meios e que poderão sentir alguma frustração, porque têm a consciência de que deram o seu melhor"..Dar demasiada importância a estas práticas pode levar à criação de "rankings internos dentro da escola, e sabemos os malefícios que estes têm para o sistema". Até porque, critica, muitas vezes "não se avalia o ponto de partida". Na sua opinião, seria interessante avaliar a evolução do estudante e não apenas a média.."Temos de relativizar esta questão. Às vezes até se cria uma competição pouco saudável por causa disto", reconhece o presidente da Confap, destacando que a forma como o sistema está implementado faz que se criem "injustiças, ainda que involuntárias"..Do lado dos alunos, conta Leonor Torres, a maioria "valoriza estas distinções e acha que devem ocorrer porque entendem que é uma forma de os motivar a serem melhores, à superação". No entanto, adianta, há "um grupo considerável de alunos que, sobretudo quando entra no ensino superior, torna-se profundamente crítico em relação a estes rituais". Alunos que integravam os quadros de honra, mas que reconhecem a existência de uma pressão "muito doentia e obsessiva", tanto da escola como da família.