Quando aterrou no Havai, Nélson Ponta-Garça levava na cabeça o que tinha estudado nos livros sobre a presença portuguesa no arquipélago americano, sabia que o ukulele é a versão havaiana do cavaquinho mas só tinha um contacto na agenda. Não havia entrevistas marcadas, nem uma que fosse, para iniciar o documentário que seria o terceiro da série Portuguese in... - levava apenas o nome de Marlene Haipi..Mas este seria o melhor número de telefone que lhe poderiam ter dado. Marlene, também lusodescendente como Nélson, arranjou maneira de lhe multiplicar os contactos nas ilhas havaianas. Do ponto de vista profissional, Marlene, que é diretora do Imiloa Astronomy Center, viria a tornar-se a produtora executiva do documentário Portugueses no Havai; do ponto de vista pessoal, ambos viriam a descobrir que ainda têm ligações familiares. "Encontrei raízes da minha família onde não esperava", diz o realizador..Não seria impossível que um filho de açorianos encontrasse familiares no Havai onde os portugueses representam mais de 10% da população do arquipélago que se tornou o 50.º estado americano em 1959 e que tem quase 1,5 milhões de habitantes. Há relatos que apontam para que, noutros tempos, os portugueses - sobretudo madeirenses, mas também açorianos - tenham chegado a ser 40% ou 50% dos habitantes da Ilha Maior, chamada Havai..Os lunas, ou capatazes, das plantações de canas-de-açúcar.Um marco na chegada dos pukikis - nome dado aos portugueses - foi o último dia de setembro 1878, quando o navio SS Priscilla atracou na baia de Honolulu, com 114 portugueses a bordo, homens, mulheres e crianças que partiram do Funchal quatro meses antes. "Os historiadores referem a data como o grande êxodo para o Havai, mas existem registos não oficiais de que os portugueses chegaram muito antes disso, nos baleeiros.".Foram as plantações de cana-de-açúcar a chamar os portugueses para o arquipélago americano no oceano Pacífico - os homens ganhavam dez dólares mensais e as mulheres oito. Nas três décadas seguintes à chegada do Priscilla, já eram 25 mil os portugueses naquelas ilhas. Eram experientes, sobretudo os madeirenses na cana-de-açúcar, e sentiam-se atraídos pela vontade de mudança e de ter uma vida melhor. E parece que a encontraram.."Tinham o carácter ideal para aquele tipo de trabalho. Eram os lunas (capatazes) que andavam a cavalo, às vezes de chicote, a coordenar outros grupos étnicos. O sentido de responsabilidade levou a que se destacassem nas plantações e escalassem rapidamente e em dois ou três anos já tinham o seu próprio terreno", conta o realizador..Depois do ataque japonês a Pearl Harbor, em 1941, a Marinha americana requisitou os atuneiros de San Diego, Califórnia, para o serviço militar - 600 pescadores de origem portuguesa voluntariaram-se para as 47 embarcações que foram mobilizadas..Favorecidos por serem brancos.Uma das situações que surpreenderam Ponta-Garça foi o facto de ter encontrado nesta pesquisa no Havai pessoas que já pertencem a uma quinta geração de portugueses - o máximo que tinha andado para trás no tempo foi quando realizou a série documental Portugueses na Califórnia e chegou a uma quarta geração..O realizador aponta um fator de proteção dos portugueses: a cor da pele. "Eram favorecidos em relação a outros grupos, como os asiáticos, os japoneses e os filipinos, ou os negros, porque eram brancos. E isso vê-se com a proximidade que tinham com o poder local.".Exemplos dessa proximidade é o facto do médico do rei Kamehameha ter sido o português João Elliott de Castro, tal como eram portugueses os músicos da corte, que tocavam o típico ukulele, ou melhor, o muito português cavaquinho. Os havaianos descendentes de portugueses são em geral gente abastada e respeitada. Foi aqui, sublinha o realizador, que notou maior relevância social atribuída ao grupo étnico. "Olham para os portugueses com grande respeito e admiração.".Perdeu-se a língua, ficaram os nomes.A presença de lusodescendentes é forte, mas a portugalidade vê-se sobretudo pelos nomes - a língua perdeu-se e, ao contrário de outros estados americanos, no Havai não há infraestruturas portuguesas. Não existem os famosos portuguese halls (os salões portugueses) ou igrejas. Mas há o ukulele e as famosas malassadas, típicas da Madeira, a que até chamam "donuts portugueses". E os últimos três mayors de Maui mostram que na política também há origens lusas..Quando realizou Portugueses na Califórnia e Portugueses na Nova Inglaterra, as entrevistas foram metade em português e metade em inglês. No Havai, das mais de 40 que realizou, apenas três foram em português - uma madeirense que vive há 20 anos no Havai, outra uma portuguesa que se casou com um havaiano e a terceira uma portuguesa da Califórnia que ali tem uma mansão de férias..Nélson sentiu a força do sangue português pulsar nas veias na cidade de Honaka. "Senti uma forte energia, como há muito não sentia, naquele cemitério. Senti que a portugalidade estava ali. Ia andando e o cemitério estava repleto de nomes portugueses, alguns alterados, como o Carvalho que escrevem Kravalho, um erro evidente dos funcionários da imigração.".A contribuição portuguesa conhecida mundialmente para a cultura havaiana é o ukulele, irmão gémeo do cavaquinho. Os marceneiros madeirenses Manuel Nunes, Augusto Dias e José do Espírito Santo têm os créditos da introdução do instrumento na música tradicional havaiana, o hula. "Agradeça aos portugueses pela modernização do hula", escrevia o Honolulu Star-Bulletin a 14 de julho de 1954..Nelson viajou três vezes para o Havai para realizar o documentário, coproduzido pela RTP, com o apoio da FLAD, e que tem estreia nacional este sábado na Madeira. Se chegou quase de mãos vazias, também é verdade que se surpreendeu com a receção. "Tive um aloha fantástico, receberam-me com colares de flores tradicionais." Mas teve outras surpresas, como o facto de serem sobretudo as mulheres as conhecedoras da história dos portugueses e de poder abrir os olhos e sentir que poderia estar nos Açores..Projeto para o futuro: toda a história da emigração nos EUA.Nélson Ponta-Garça, 38 anos, que vive entre a Califórnia e os Açores, já está a pensar no próximo projeto, cuja pré-produção está prevista para 2020: Portugueses na América, um documentário global que retrate toda a emigração naquele país. Com os documentários Portugueses in...Califórnia, Nova Inglaterra e Havai, Nelson Ponta-Garça considera que estão retratadas as três grandes áreas da emigração nos Estados Unidos, faltando apenas Nova Iorque e Nova Jérsia..A Florida é outro dos destinos escolhidos pelos portugueses, embora se trate de deslocações internas mais recentes, uma vez que, além do sol, oferece boas condições aos reformados. O objetivo é que Portugueses na América seja um retrato global, que junte o principal dos filmes já realizados, mas que também aborde a realidade de Nova Iorque, Nova Jérsia, Florida e outros estados onde se tenham instalado portugueses, desde o Texas ao Idaho..A ambição é passar da tela para o papel e lançar um livro. Numa perspetiva mais caseira, Ponta-Garça pretende realizar um documentário sobre a história e o povoamento dos Açores.