No programa da RTP Prós e Contras, na última segunda-feira, houve um debate em que de um lado estavam médicos e do outro uns senhores que praticam umas aldrabices a que, estupidamente, se convencionou chamar medicinas alternativas. A semelhança com os factos alternativos trumpianos não será coincidência..A questão de instituições ligadas diretamente ao interesse público ou de formação e divulgação científica, como universidades, aceitarem fazer debates ou simplesmente dar espaço a opiniões sem qualquer conteúdo científico ou ideias que vão contra aquilo a que podemos chamar valores consensuais da nossa civilização, como a defesa do terrorismo, do racismo, da misoginia, não é de agora..Com o advento das redes sociais e a capacidade praticamente ilimitada de qualquer ideia ser divulgada - basta dinheiro e bons especialistas em informática - esta questão atingiu novos contornos. Esta nova realidade obriga a repensar a atitude das ditas instituições que têm como missão promover a ciência e os valores que ainda reputamos como válidos. Gera-se o dilema entre deixar que determinados conceitos e ideias se espalhem, como nunca antes teria sido possível, sem qualquer tipo de contraditório e a espécie de legitimação que um debate com quem as defende pode trazer..Convém agora fazer uma separação. Uma coisa é aceitar-se discutir ideias, ideologias ou formas de luta por muito absurdas que possam ser ou mesmo que ponham em causa valores que julgamos fundamentais. Neste aspeto, as novas formas de comunicação deixam as instituições perante o dilema acima referido, mas, claro, estamos no campo da opinião. Outra é aceitar-se discutir a ciência. Pior, pôr no mesmo patamar quem utiliza o método científico com quem, de facto, o despreza. Pior ainda, com quem interfere na saúde e mesmo a vida das pessoas socorrendo-se de simples crendices sem qualquer prova ou utilização de comuns critérios científicos..Se seria apenas patético assistir a uma discussão entre alguém que diz que a Terra é plana e um astrónomo, pôr um médico a debater com um curandeiro o tratamento da doença dos legionários é, no mínimo, um perigo público (no Prós e Contras um homem sentado no palco assegurava o tratamento de um cancro qualquer através do consumo de chá verde...). E não, não é chamar estúpidas às pessoas que fossem eventualmente convencidas pelas capacidades persuasivas do bruxo, é que simplesmente a esmagadoríssima maioria das pessoas não tem as ferramentas necessárias para aferir da razoabilidade dos argumentos aduzidos ou do modo como se aplicam os critérios empíricos da ciência..Só a educação e a formação científica (demasiadas vezes esquecida) pode ajudar, mas esse caminho está, por mais estranho que possa parecer, cada vez mais minado - era capaz de apostar que a RTP, naquela segunda-feira, deu mais tempo de antena à charlatanice do que num ano à divulgação científica. A mais fácil disseminação do conhecimento, que julgávamos inevitável com as novas ferramentas de comunicação, trouxe, pelo contrário, o império da opinião gratuita. Tudo se tornou opinião e por o ser se arroga válida ou, pelo menos, tão válida como qualquer outra. Pouco importa se se passou uma vida a estudar uma matéria, se se é um profundo conhecedor de um tema, todo esse conhecimento se resume a uma opinião que pode ser contestada por um qualquer boçal ignorante porque ele também tem direito à opinião. E se este cidadão tiver muitos seguidores nas redes sociais, a sua patacoada arrisca-se a ser levada a sério. Ou então ser uma personagem importante, o presidente dos Estados Unidos, por exemplo. Pôr a ignorância do homem mais poderoso do mundo e juntá-lo aos meios de comunicação de massas mais tentaculares de sempre do universo dá bem a ideia do perigo que enfrentamos. Que, aliás, é bem real, Donald Trump é o mais notório negacionista da responsabilidade do homem pelo aquecimento global e afirma do seu púlpito presidencial que as ventoinhas utilizadas para a produção de energia elétrica podem causar o cancro..Ao império da opinião junta-se um conceito abstruso de democracia - e que, no limite, a nega: a ditadura da maioria. No tal programa da RTP, um dos presentes invocou um estudo de opinião que garantia que uma grande percentagem de cidadãos aprovava as chamadas medicinas alternativas, a moderadora exclamava qualquer coisa do género: "Bom, se as pessoas querem..." Já era conhecida a tentativa de destruir a democracia representativa através de referendos, agora estamos a atingir o limite de a ciência se definir por a vontade da maioria. Ou seja, a minha opinião valeria o mesmo da de um médico no tratamento de uma doença ou o mesmo médico seria chamado a decidir se um reputado chefe de culinária devia utilizar manteiga ou azeite num qualquer cozinhado..Não será preciso referir as especiais responsabilidades da RTP. Quando um serviço público de televisão põe em confronto o conhecimento científico com uma rapaziada que acha umas coisas sobre como tratar da saúde a pessoas, e põe ambas as partes ao mesmo nível, algo está profundamente errado e já atingiu mesmo pessoas que deviam ter um sentido de responsabilidade bem mais apurado. A mesma coisa se pode dizer sobre os médicos que aceitaram debater com pessoas a que nem eles nem a ciência que representam reconhecem qualquer valor. Mais, que sabem ser pessoas que atacam valores que juraram respeitar..Não deve estar longe um debate televisivo sobre o criacionismo ou se o Sol anda à volta da Terra..Política e família, parte II.Como era facílimo de prever, a novela das nomeações familiares não parou e vai continuar. Como também já era evidente há uma semana, nem o PS nem o PSD estão interessados em falar com seriedade do assunto, quanto mais sequer tentar resolvê-lo. O PSD teima que este problema apenas afeta os socialistas, o PS assobia para o lado e finge que não é um problema grave. A maneira como o primeiro-ministro enunciou a questão e o código de ética que supostamente propôs indicam claramente que só lhe dá importância porque percebe que pode ter impacto nos resultados eleitorais. Fazer a listagem das possíveis impossibilidades de nomeação foi a melhor maneira de dar a entender que é impossível fazer uma legislação séria ou, pelo menos, viável sobre o assunto..Claro que se seguirão as nomeações de familiares de antigos governantes sociais-democratas e até às eleições vamos assistir a este triste pingue-pongue..Entretanto, poucos parecem perceber o mal que todos fizeram e estão a fazer à nossa democracia. Vamos todos ficar pior do que estávamos no início da polémica. Depois digam que a culpa é dos populistas..Uma legítima defesa de quarenta tiros.Um condutor não respeitou a ordem de stop de uma brigada da polícia. Para tentar fugir, esse mesmo condutor atirou o veículo para cima dos agentes. A polícia disparou quarenta tiros e em consequência disso matou uma rapariga que seguia no carro..Vamos dar como certa a versão policial de que o condutor tentou atropelar os agentes da autoridade. É difícil aceitar que dar um tiro em direção a um carro em movimento seja considerado legítima defesa, quanto mais quarenta. No entanto, foi com base nessa alegação que a Polícia Judiciária confirmou o inquérito da Inspeção-Geral da Administração Interna e decidiu arquivar o processo..O que estas duas entidades teimam em não perceber é que os agentes da autoridade representam a comunidade e o seu conjunto de valores. Neles está a defesa da vida humana. Só em situações verdadeiramente excecionais se admite que se ponha em risco esse valor. Parece evidente que nem a possibilidade - que estava errada - de naquele carro seguirem possíveis assaltantes a uma caixa de multibanco permitiria que se atirasse quarenta tiros pondo de forma clara em causa a vida dos passageiros..Ninguém nega a difícil missão das polícias, mas é mais do que tempo de elas perceberam que a defesa da comunidade não permite que atropelem os seus valores.