"A grande diferença é esta: em 69 o Presidente da República negou a palavra aos estudantes. Hoje o Presidente veio agradecer-lhes aquele gesto". Foi assim que Marcelo Rebelo de Sousa terminou este domingo em Coimbra a sessão evocativa da crise académica de 69, a sala 17 de Abril, no mesmo edifício da Faculdade de Matemática onde há 47 anos Alberto Ministro (então presidente da Associação Académica) pediu a palavra a Américo Tomaz, que lha negou..Num fim de tarde-noite de muita emoção para o antigo líder estudantil (Alberto Martins, que viria a ser ministro da Justiça, entre 2009 e 2011) e para os (poucos) dessa época que o acompanharam naquele regresso ao passado, Marcelo imitou ontem uma ação de Jorge Sampaio, tornando-se no segundo Presidente da República, em democracia, a juntar-se aos estudantes e lembrar a data..[artigo:5129770].O Presidente chegou a Coimbra pouco depois da hora combinada, descerrou uma placa na Associação Académica e visitou todas as secções e núcleos do velho edifício. Sempre sorridente, distribuiu sorrisos e cumprimentos a todos os estudantes e a cada um em particular, no já tradicional clima de afetos. Ouviu fado, aplaudiu as tunas, e foi a meio da visita - antes de visitar a República dos Fantasmas (uma visita vedada aos jornalistas) - que uma estudante mais ousada lhe pousou a capa negra sobre os ombros. E foi assim que Marcelo Rebelo de Sousa subiu a monumental escadaria até à universidade, no meio dos estudantes. Ficava para trás a visita detalhada a todas as secções da AAC, onde o chefe de Estado se deliciou com os truques de judo dos mais pequenos: afinal, em miúdo, também ele experimentou a arte..Para o fim dessa visita guiada ficou o futebol, ali representado pelos diversos escalões, até infantis. "Vamos tirar aqui uma fotografia" - sugere aos mais pequenos, vestidos de equipamento laranja. "Esse é o equipamento alternativo?" - pergunta ele. Mas não, é apena o de guarda-redes. O Presidente faz aquilo que a sua assessora Mariana Correia preconizara desde o início: "ele vai fazer este percurso, mas claro que para sempre que houver alguém para cumprimentar...".O "herói" Alberto Martins.No auditório 17 de Abril não cabia mais ninguém. O atual presidente da Associação Académica de Coimbra, José Dias, sente o peso "não da capa, mas da responsabilidade" de estar perante "neste lugar, onde há 47 anos Alberto Martins pediu a palavra". É a ele que se dirige especialmente, certo de que "os acontecimentos do passado não poderão ser esquecidos". Já terminou o curso de bioquímica e faz atualmente o mestrado o jovem de 24 anos natural de Coimbra, que no dia anterior caracterizava a cidade ao DN como "um ecossistema diferente do resto do país". Afinal, foi a partir dali que alastrou a toda a sociedade portuguesa a determinação de acabar com a ditadura, numa luta que já vinha desde Humberto Delgado, particularmente desde o início dos anos 60..José Dias decidiu convidar o Presidente da República para esta cerimónia no dia em que a Associação Coimbra foi chamada a Belém para assinalar o Dia do Estudante. Marcelo aceitou, mas ontem, quando fazia a "sempre inspiradora viagem entre Lisboa e Coimbra", questionava-se se haveria quórum para tal, num domingo à tarde, tal como acabaria por confessar, no final da sessão. "Está dada a resposta, perante este auditório"..Mas houve respostas que ficaram por dar, no dia de ontem. Por exemplo, que solução para uma das ameaças às Repúblicas de Coimbra - a lei do arrendamento urbano. Ou que futuro para a Ação Social Escolar, de que dependem cada vez mais estudantes universitários. Marcelo foi jantar com alguns, na Residência da Alegria, mas não distribuiu mais do que afetos. "É uma forma de exprimir a proximidade", considera o Presidente, que entende ser essa uma maneira de estar mais perto do povo, "que é mesmo quem mais ordena", disse..A poucos dias da comemoração da Revolução dos Cravos - a que a crise de 69 abriu caminho - Marcelo acreditar estar "no cruzamento ideal para agradecer a Alberto Martins o seu gesto naquele dia em que pediu a palavra". De resto, se há uma lição que lhe fica de Coimbra - acumulando-a com "a mágoa de nunca ter sido nem escolar nem docente" da universidade - é a de que "o que faz verdadeiramente a diferença nas sociedades é a rutura", como aquela iniciada pelo gesto de Alberto Martins, naquele 17 de Abril de 1969. De resto, "a liberdade, a democracia e a justiça social não são dados adquiridos. Constroem-se com ação e destroem-se por omissão. Há que construir a democracia todos os dias", afirmou, dirigindo-se em particular aos estudantes..Para além de Alberto Martins, a sessão evocativa da crise académica de 69 contou também com as intervenções de Rui Alarcão, sócio honorário da Associação Académica, e de João Gabriel Silva, o atual reitor da Universidade de Coimbra, que ali entrou pela primeira vez em 1975, já em liberdade. "Foi nesta sala a minha primeira aula", lembrou, num breve discurso em que destacou duas figuras, entre os estudantes que ao longos dos 726 anos da instituição por ali passaram: Antero de Quental e Alberto Martins, a quem agradeceu ter aberto caminho "à liberdade de pensar, de construir o futuro".