Presidente de sindicato e candidato da Basta arguido por fraude contra PSP

Peixoto Rodrigues, presidente do Sindicato Unificado da PSP e candidato da Coligação Basta, é acusado de participação em esquema fraudulento que lesou o Estado em mais de 66 mil euros. "O normal da nossa sociedade é as pessoas serem arguidas", afirma.
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"Não confirmo nem desminto". Foi assim que Ernesto Peixoto Rodrigues respondeu ao DN, no final de junho, sobre o seu estatuto de arguido, recusando-se a fazer qualquer outro comentário. Embora como presidente do Sindicato Unificado da PSP tenha, desde que a existência do caso foi conhecida, prestado por várias vezes declarações aos media sobre o caso - por exemplo certificando à Lusa que "entre os arguidos estão agentes e oficiais da PSP, sendo sobretudo polícias das esquadras da zona do Seixal, Setúbal e Almada, mas também há elementos da Unidade Especial de Polícia", e afiançando não haver "fraude ou ilegalidade", considerando a prática em causa "o mesmo que ir às compras com a senha de refeição, o Estado não é lesado" -, Peixoto Rodrigues nunca assumiu ser um dos acusados.

Mas na acusação exarada a 31 de maio pela 9ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal, e à qual o DN teve acesso, o seu nome figura em 65º lugar na lista de 271 arguidos, dos quais 265 polícias, pelos crimes de peculato e falsificação de documento, o primeiro com pena de um a oito anos, o segundo com pena de um a cinco.

Como os seus 264 colegas da PSP constantes na lista, Peixoto Rodrigues, que foi candidato pela coligação Basta às eleições europeias - uma candidatura que a Direção da PSP teria começado por considerar ilegal, dando depois essa avaliação como "sem efeito" -, é acusado de ter beneficiado de um "acordo" entre os agentes e alguns funcionários dos Transportes Sul do Tejo (TST), no âmbito do qual os agentes trocavam por dinheiro as requisições que a PSP lhes entregara para carregamento de passes.

Ernesto Peixoto Rodrigues, diz a acusação, solicitou e recebeu da PSP, entre 24 de novembro de 2014 e 10 de abril de 2015 (o período no qual incidiu a investigação judicial), requisições para trocar por carregamento do passe multimodal L123SX, no valor de 86,95 euros, e trocou essas requisições na bilheteira de Cacilhas da TST por numerário, num valor total de 521,70 euros. Ainda segundo o MP, não tinha sequer, na altura da entrega dessas requisições, um cartão Lisboa Viva no qual fazer o carregamento; só o terá adquirido a 15 de maio de 2015 - o dia seguinte ao da publicação, no jornal Público, de uma reportagem expondo o esquema, a qual deu origem à abertura do processo pelo MP.

Confrontado pelo DN com a sua presença na lista de arguidos, Peixoto Rodrigues voltou a escusar-se a qualquer comentário - "O que tinha a falar sobre isso já disse" - mas acabou por afirmar que "todos os dias são constituídos milhares de arguidos, o normal da nossa sociedade é as pessoas serem arguidas, não significa nada. O que acontece a seguir vamos ver." Questionado sobre se assumiu a prática quando inquirido e se considera ter condições para se manter na presidência do Sindicato Unificado da Polícia, não quis responder.

Conluio entre polícias e bilheteiros

O valor total das requisições trocadas por numerário nos meses em apreço na investigação do MP é de 66 951,50 euros, dos quais é pedida aos arguidos a restituição, com juros, pela PSP.

O valor dos passes e portanto das requisições em causa na acusação varia: se a requisição de Peixoto Rodrigues correspondia a 86,95 euros/mês, outros arguidos são acusados de trocar por dinheiro requisições mensais de 25,70 euros ou 35,65, existindo também valores muito mais altos, como 105,20, 112,90 e 155,15 euros mensais.

Há também, curiosamente, pelo menos uma agente que em três meses recebeu requisições de três valores diferentes - 114,80, 35,65 e 78,15 euros. Também relevante é o facto de haver vários polícias que, como Peixoto Rodrigues, só adquiriram o cartão de carregamento após sair a referida notícia no Público, havendo mesmo alguns que nunca tiveram cartão.

O esquema é explicado em detalhe na acusação que, primeiro, descreve como deve funcionar o sistema, se dentro da legalidade: "Os agentes da PSP têm direito à utilização gratuita de transportes coletivos terrestres, fluviais e marítimos nas deslocações dentro da área de circunscrição em que exercem funções e entre a sua residência habitual e a localidade em que prestam serviço, até à distância de 50 quilómetros", lê-se no documento.

O agente que queira beneficiar dessa possibilidade, prossegue a magistrada responsável pelo processo, faz requisição do título de transporte de que necessita ao "dirigente máximo do comando", indicando o tipo de senha, passe e valor respetivo, assim como os seus elementos de identificação; se o pedido for autorizado, o nome do agente é colocado na lista dos títulos concedidos e emitida, em triplicado, uma requisição, que tem todos os elementos de identificação, assim como o valor do passe e o seu tipo. O original e o duplicado deste documentos são entregues ao beneficiário, depois de este assinar.

A seguir, o agente policial deve entregar os dois na operadora de transportes, para que se efetue o carregamento do passe. Ao receber a requisição, o funcionário da bilheteira deve verificar os dados e carregar o título de transporte correspondente, registando o dito na máquina com a indicação "voucher" (ou seja, com pagamento diferido). Entrega o título ao agente, assim como o recibo respetivo, e rubrica a requisição, na qual regista o seu número de empregado, e guarda-a para que seja entregue na prestação de contas.

Ainda de acordo com a acusação, na prestação de contas é extraído um relatório de vendas do bilheteiro, onde consta a descrição das quantidades vendidas e os valores dos títulos de transporte registados, que deve bater certo com o numerário, os valores dos talões de multibanco e das requisições respeitantes ao mesmo período. A TST cobra depois as requisições às entidades emitentes -- neste caso, a PSP.

Ora, diz a acusação, "em data não concretamente apurada do ano de 2014, mas seguramente anterior a novembro, foi estabelecido um procedimento entre cada um dos arguidos agentes da PSP e os arguidos bilheteiros da TST que prestavam os seus serviços nos postos de atendimento de Cacilhas e Sete Rios, com vista a convolar/trocar a requisição mensal de transporte pelo correspondente valor em numerário, montante este que depois o agente da PSP fazia seu."

Nessa ocasião, acusa o MP, o bilheteiro retirava dinheiro da caixa e entregava ao agente; não registava a requisição na máquina na opção voucher e em nenhuma outra e não registava a venda do título naquele valor nem, evidentemente, efetuava qualquer carregamento; mas rubricava as requisições e colocava nelas o seu número de funcionário, para as validar, apresentando-as depois na prestação de contas. Naturalmente, estas requisições eram depois enviadas para a PSP pelos serviços financeiros da TST, para que aquela Polícia as pagasse.

Suspeita incluía corrupção

O peculato, definido no artigo 375º do Código Penal, ocorre quando um funcionário "ilegitimamente se apropria, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, públicos ou particulares, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções"; a falsificação de documento, tipificada no artigo 256º, define-se neste caso como a ação de quem, "com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime", "fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante"; o crime é agravado pelo facto de o agente ser funcionário.

A suspeita inicial, que decorreu da citada investigação do Público, incluía também corrupção, ativa (por parte dos agentes da PSP) e passiva (dos funcionários dos TST), consubstanciada no facto, relatado na citada reportagem (e também num testemunho, recolhido pela SIC e divulgado em junho de 2015, de um polícia cuja identidade não era revelada), de os funcionários dos TST que faziam a troca das requisições por dinheiro ficarem com uma percentagem - que chegaria a 20% -- do valor em causa.

Porém o Ministério Público não encontrou provas conclusivas para fundamentar tal acusação. Apesar de nas contas bancárias de cada um dos seis funcionários em causa terem sido, nos meses sobre os quais incidiu a investigação, efetuados vários depósitos em numerário que perfaziam valores diversos, "na maioria, não superiores a 1000 euros [por mês]", existindo "casos pontuais de depósitos de quantias superiores, mas nunca em montante que ultrapasse 2000 euros", não foi possível determinar sem sombra de dúvida que tais entradas de dinheiro se deviam ao "esquema" (diz o MP que porque as contas eram tituladas por outras pessoas, as quais poderiam ter sido responsáveis por aqueles depósitos, e porque estes continuaram, embora em menor número e valor, após a publicação da investigação do Público); e não foram obtidos testemunhos nesse sentido. Assim, concluiu o MP, se "dizem as regras da experiência comum" que deve ter havido o "recebimento de vantagem" que tipifica a corrupção, a existência de tal vantagem "não resultou, em fase de inquérito, concretamente apurada/indiciada."

Aliás, nenhum dos funcionários dos TST prestou declarações quando inquirido; o mesmo sucedeu com a maioria dos polícias. Os agentes que falaram fizeram-no para negar a prática, à exceção de um. Este admitiu ter recebido em numerário o valor do carregamento constante na requisição, mas sem qualquer percentagem para o funcionário dos TST que efetuou a troca. Assegurou tratar-se de "uma prática comum por parte da polícia, sendo encarada como um direito que poderia e deveria ser integrado nos seus vencimentos." Este testemunho corrobora em parte o do agente ouvido pela SIC, que disse existir esta prática há mais de 20 anos e ser "do conhecimento das chefias da Margem Sul". Mas este polícia certificou, ao contrário do colega ouvido pelo DIAP, que os bilheteiros recebiam uma contrapartida que podia chegar a 20% do valor da requisição.

Agentes podiam levantar requisições "em bloco"

Da investigação resulta também a informação de que, apesar de na requisição dever constar a assinatura do agente beneficiário, era possível a dita requisição não ser "levantada" pelo agente que a pedira, mas por outro qualquer agente - e portanto que a assinatura que se depreende da acusação ser necessária para tal não fosse a do próprio ou não fosse mesmo aposta qualquer assinatura no ato.

Assim, podiam ser outros agentes a, "em bloco", levantar requisições de colegas, assinando por todos ou nem assinando, e levá-las para efetuar o carregamento (ou a troca por dinheiro) também em bloco. Pelo menos é o que resulta de inquirições de agentes em relação aos quais, precisamente por esses alegados factos - as requisições que se concluiu corresponderem a carregamentos fictícios de títulos de transporte em seu nome não tinham a sua assinatura, não se podendo assim provar que tinham sido eles a levantá-las e a trocá-las por dinheiro --, não foi deduzida acusação.

Também no que respeita aos TST dir-se-á existir uma certa falta de controlo: se, como se lê na acusação, os bilheteiros têm de colocar diariamente o numerário recebido numa máquina que emite um talão, e se a cada momento de prestação de contas são entregues os talões relativos ao numerário, aos pagamentos por multibanco e às requisições, assim como aos títulos vendidos, é estranho que nunca tenha sido detetada não só a falta do numerário correspondente às requisições da PSP que foram trocadas por dinheiro vivo mas também a inexistência da venda dos títulos a elas relativas. Admitindo que em cada período de prestação de contas (de 15 em 15 dias) o valor retirado da caixa fosse, na soma total, compensado pelo valor das requisições da PSP entradas, não se vê como tal montante podia bater certo com o dos títulos vendidos.

Peixoto Rodrigues, nas declarações que fez aos media sobre o caso, disse ter consultado o gabinete jurídico do sindicato a que preside, concluindo que não existiu ilegalidade nas ações dos polícias arguidos - e portanto na sua.

Recorde-se que o Sindicato Unificado da Polícia patrocinou a defesa de 16 dos 18 agentes da PSP acusados no caso das agressões a habitantes da Cova da Moura na esquadra de Alfragide. Oito dos acusados foram condenados, um dos quais a prisão efetiva. Os crimes incluíram agressões (incluindo disparos de shotgun contra pessoas), sequestro, injúria, abuso de autoridade, denúncia caluniosa e falsificação de documento (por terem lavrado autos de notícia falsos e feito acusações inventadas). A tese da defesa, de que os agentes tinham reagido a uma tentativa de invasão da esquadra por parte de cinco jovens negros desarmados, não foi aceite pelo tribunal.

Todos os agentes acusados no processo dos passes foram sujeitos a processos disciplinares pela PSP mas, como é costume nos casos em que há processos-crime sobre o mesmo assunto, a direção nacional da instituição já comunicou que "irá aguardar" pelo resultado final do processo-crime para aplicar "medidas disciplinares definitivas". Depreende-se pois que continuarão ao serviço da corporação.

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