A aceitação pelo Governo de Espanha do plano de autonomia para o Saara Ocidental proposto por Marrocos não colide com a posição histórica de Madrid de defesa do direito à autodeterminação dos povos, consideram dois analistas espanhóis..Em declarações à agência Lusa, os professores universitários Itziar Ruiz-Giménez Arrieta e José Maria Peredo opinaram que a nova posição deve ser vista como uma forma de tentar resolver o problema do Saara Ocidental, que se arrasta há dezenas de anos, estando relacionada sobretudo com a busca de uma nova ordem mundial pelo Ocidente.."O apoio de Madrid ao direito à autodeterminação do povo palestiniano é muito diferente do caso do Saara, a começar pelo facto de no caso da Palestina haver já um 'estado' constituído e reconhecido", disse à Lusa o professor de Comunicação e Política Internacional na Universidade Europeia de Madrid José Maria Peredo..Espanha, que ainda é considerada a potência colonial que administra o Saara Ocidental, território que abandonou em 1975, defendeu durante muito tempo que o controlo Marrocos sobre o território era uma ocupação e que se devia realizar um referendo patrocinado pela ONU para que o povo saarauí decidisse sobre o seu futuro. O território é reclamado pelo movimento independentista Frente Polisário, apoiado pela Argélia..Por isso, Madrid surpreendeu quando em meados de março o primeiro-ministro, Pedro Sánchez, enviou ao rei de Marrocos, Mohamed VI, uma carta reconhecendo "a importância da questão do Saara para Marrocos" e considerando a proposta de Rabat para criar um Saara Ocidental autónomo controlado pelo país como sendo a iniciativa "mais séria, realista e credível" para solucionar décadas de disputa pelo vasto território..Itziar Ruiz-Giménez Arrieta, professora e coordenadora do Grupo de Estudos Africanos da Universidade Autónoma de Madrid, também concorda que cada "caso tem de ser analisado à luz de contextos políticos e jurídicos muito diferentes".."O caso da Palestina é muito diferente", afirmou a catedrática, dando ainda como exemplo de "critérios políticos muito particulares" a posição de Madrid contra a independência do Kosovo em 2008, porque poderia servir de antecedente às aspirações também de autodeterminação da região espanhola da Catalunha..Para José Maria Peredo, Madrid "está à procura de uma solução para um conflito que se arrastava sem fim à vista" e a questão deve também ser vista no quadro mais global de uma nova ordem internacional que poderia alargar a estabilidade, democracia e desenvolvimento mais para sul na outra margem do Atlântico..De acordo com as resoluções das Nações Unidas, o Saara Ocidental é um "território não autónomo", cujo estatuto só pode mudar quando "o povo da colónia ou território (...) tiver exercido o seu direito à autodeterminação em conformidade com a Carta [das Nações Unidas] e, em particular, com os seus objetivos e princípios"..Na mesma linha, um acórdão do Tribunal da União Europeia de 29 de setembro de 2021 declarou que a Frente Polisário é o legítimo representante do povo saarauí, devendo ser consultada no caso de qualquer decisão que o afete..No entanto, o conflito entre Marrocos e a Frente Polisário arrasta-se há mais de quatro décadas..Os Estados Unidos, quando tinham como presidente o republicano Donald Trump, foram a primeira grande potência a reconhecer a soberania marroquina sobre o Saara Ocidental, em dezembro de 2020, como parte de um acordo no qual Marrocos normalizou as suas relações diplomáticas com Israel..Madrid tem referido que a sua nova posição se alinha com a da Alemanha e da França, que também apoiariam o plano de autonomia de Marrocos..Os analistas observam que a ONU, nomeadamente através do novo enviado para o Saara Ocidental, o italiano Staffan de Mistura, tem agora de tentar esclarecer uma série de questões em aberto, como o da necessidade de realização de um referendo no território..Itziar Ruiz-Giménez Arrieta alerta que, no caso da organização de um referendo, "devem ser dadas garantias para que este seja levado a cabo sem manipulação e de uma forma independente"..O plano de autonomia de Rabat prevê a cedência de certas competências ao povo saarauí, mas no quadro de um Estado marroquino fortemente centralizado.."A região autónoma do Saara" teria assim competências em matéria jurídica, administrativa e judicial, bem como em matéria económica, fiscal e sociocultural..No entanto, em termos de moeda, religião, defesa, negócios estrangeiros e bandeira, a competência caberia exclusivamente ao governo marroquino. Mais, a região teria um governo e um presidente investidos pelo rei Mohamed VI e eleitos previamente pelo parlamento marroquino..A alteração de posição do Governo espanhol está longe de ser consensual em Espanha, tendo sido criticada por todos os grupos políticos, excetuando o Partido Socialista (PSOE) de que Pedro Sánchez é o secretário-geral..Mesmo uma parte do Governo espanhol está contra a nova posição, com o parceiro do PSOE na coligação governamental minoritária, o Unidas Podemos (extrema-esquerda), a recusá-la..Madrid defende a sua posição, argumentando que o acordo alcançado com Marrocos é "equilibrado" para os interesses de ambos os países e que abre "uma nova etapa muito mais sólida" em termos de segurança, migrações, mobilidade e relações comerciais e económicas entre "parceiros estratégicos"..Pedro Sánchez deslocou-se na última quinta e sexta-feira a Rabat, onde os dois países se comprometeram a "abrir uma nova etapa" nas suas relações suspensas há um ano..A crise entre Rabat e Madrid teve o seu ponto mais alto com a chegada de mais de 10.000 migrantes ao enclave espanhol de Ceuta, em meados de maio de 2021, na sequência de uma flexibilização dos controlos do lado marroquino..A Espanha denunciou na altura a "chantagem" e a "agressão" de Marrocos, tendo Rabat chamado a sua embaixadora em Madrid, que só regressou no passado dia 20 de março, dois dias depois de ser conhecida a nova posição de Espanha..A deslocação de Sánchez a Rabat foi feita no mesmo dia em que uma maioria de deputados no parlamento espanhol aprovou uma declaração política que ratifica o seu apoio para que o Saara Ocidental possa decidir sobre o seu futuro num referendo de autodeterminação, sendo o PSOE o único partido que votou contra..Os parlamentares denunciaram o abandono da posição "histórica" de neutralidade de Madrid em relação à antiga colónia espanhola..Uma reunião de alto nível entre os governos espanhol e marroquino deverá realizar-se antes do final do ano para implementar o "roteiro" de aproximação dos dois países..Entre as "questões de interesse comum" estão a "reativação" da cooperação em matéria de migração e a delimitação das águas territoriais, e outras prioridades incluem o comércio e o investimento - a Espanha é o principal parceiro comercial de Marrocos - e a cooperação energética, depois de a Argélia ter encerrado o gasoduto Magrebe-Europa..Para Madrid, o principal objetivo do restabelecimento de relações com Rabat é assegurar a sua "cooperação" no controlo da imigração ilegal. Marrocos tem sido regularmente acusado por muitos observadores de utilizar os migrantes como meio de pressão..O governo espanhol também espera que Rabat afaste a sua reivindicação em relação aos enclaves de Ceuta e Melilla, mas os analistas advertem que Madrid não recebeu quaisquer garantias reais de Marrocos.