São procurados pela capacidade de trabalho, mas, sobretudo, pelas características humanas. Lá fora, os portugueses têm fama de ser um povo simpático, atencioso, que sabe cuidar dos idosos. É isso que faz que os países estrangeiros que não têm mão-de-obra especializada venham contratar a Portugal. Querem pessoas para trabalhar no chamado regime live in, ou seja, 24 horas por dia em casa dos clientes. Oferecem alojamento, refeições e salários que podem ultrapassar os dois mil euros por mês. Vitória, Maria, Sofia e Graça aceitaram "deixar de ter vida própria" para prestar este tipo de cuidados no estrangeiro. Integraram famílias que não são as suas e nem sempre são bem tratadas. "Mas foi uma escolha", dizem..Vitória, 44 anos, cuida de idosos há seis no Reino Unido. "Estou com uma senhora de 83 anos, que sofre de demência. Não é uma cliente fácil. Não me deixa dormir durante a noite e durante o dia é muito exaustiva", conta ao DN, numa conversa telefónica a partir de Londres. Diz que a família da mulher reconhece a sua paciência. "Nunca gosta da comida. Não posso usar cremes, nem perfume nem nada. Implica com tudo." Há dois anos e meio na mesma casa, Vitória já se habituou às exigências, mas assume que o trabalho é desgastante. "Não tanto a nível físico. Já tive outra cliente que dava mais trabalho a esse nível." Também chegou a trabalhar num lar, mas sentia que não tinha tempo para prestar os cuidados que os utentes precisavam..Cabe a Vitória assegurar a medicação da cliente, fazer a limpeza e manutenção da casa, preparar as refeições, fazer as compras. "Se ela estiver bem-disposta, consigo entrar no quarto para mudar a roupa da cama. Mas é muito raro, porque ela não quer ninguém lá dentro." Tem duas horas de descanso por dia, o único período em que sai de casa. No resto do tempo, além das funções que lhe competem, tem de estar permanentemente de vigilância. Trabalha 22 dias e vem "uma, duas ou três semanas a Portugal"..Vitória não é um caso típico, uma vez que emigrou sem qualquer experiência - e este é um dos requisitos em muitas empresas. Recusa-se a romantizar a sua história. Não emigrou porque esta era a sua vocação, nem se considera uma pessoa realizada. Estava desempregada, separada do pai dos filhos (na altura com 6 e 8 anos), sem dinheiro para as despesas. "Tinha de tomar uma decisão", recorda. Deixou de lado o canudo, a formação em Gestão de Recursos Humanos, e começou a candidatar-se a empresas de recrutamento no Reino Unido, onde recebeu formação para ser cuidadora interna..Quando viajou pela primeira vez, Vitória esteve três meses sem vir a Portugal. "Cheguei nas vésperas de Natal. Não foi nada fácil, porque tive de deixar os meus filhos." Com a voz trémula, recorda as vezes em que os filhos se agarravam às suas pernas, em Portugal, a pedir-lhe para não viajar. "Agora têm outra idade, já conseguem perceber melhor." Com o trabalho em Londres, onde recebe 109 libras por dia (cerca de 122 euros - valor ilíquido), consegue "dar-lhes uma vida mais confortável". E é isso que lhe dá força para continuar, num país onde "o tempo está sempre carregado, cinzento". "Preciso de ir a Portugal regularmente para respirar e estar com os meus filhos.".O Reino Unido é um dos países em que há maior carência deste tipo de cuidados, pois existem mais de 11 milhões de idosos (um número superior à população total de Portugal) num universo de 64 milhões de pessoas. Sem camas suficientes nos lares, esta é uma opção para muitas famílias, sobretudo para as mais abastadas. "Mas também há casos em que é o council que paga os cuidados", adianta Vitória..Só entre 2017 e 2019, a plataforma Manda-te enviou 60 portugueses (maioritariamente mulheres) para trabalhar nesta área no país. Procuravam parcerias com as empresas mais exigentes e que ofereciam melhores condições: "Pelo menos um ano de experiência e um nível de inglês quase nativo", conta Filipe Amorim, responsável pelo Manda-te..Além do regime para trabalhar como interno em casas privadas, também é feito recrutamento para apoio domiciliário e lares de idosos. Mas o primeiro, diz Filipe Amorim, é aquele que paga mais. "Entre 80 e 100 euros por dia, sem impostos. E não há despesas com casa ou alimentação." E é também aquele onde o recrutamento é mais exigente: "Precisava de entrevistar cem pessoas para encontrar uma." Regra geral, prossegue, os cuidadores fazem entre duas e seis semanas de trabalho e folgam duas para vir a Portugal. Um sistema que não é igual em todos os países, como veremos mais à frente..Apesar do interesse das empresas nos cidadãos portugueses, Filipe Amorim deixou de trabalhar com o Reino Unido nos últimos meses: "Teve que ver com a problemática do Brexit. Com a incerteza acerca do que se iria passar, notámos uma quebra no interesse.".Nuno Pinto, da empresa de recrutamento Vitae Professionals, também notou que "da parte dos portugueses não qualificados existe mais receio". "Não sabem se vai ser um Hard Brexit. Existem muitas dúvidas, muita indefinição em relação ao futuro. Mas não acho que isso condicione as pessoas que querem ir", adianta, destacando que o interesse dos empregadores britânicos se mantém elevado..Quem vai desempenhar este tipo de funções deve estar habilitado para fazer a limpeza da casa, preparar e administrar refeições, assegurar os cuidados de higiene e conforto, apoiar a pessoa nas atividades diárias, administrar medicação e acompanhar o idoso nas idas ao exterior para consultas, passeios ou cabeleireiro, por exemplo. Mas, em muitos casos, as famílias até contratam empresas externas para higiene e lides domésticas..Do Porto para o Luxemburgo.Depois de uma década a trabalhar em lares de idosos, Maria, de 61 anos, resolveu deixar o país e emigrar para o Luxemburgo. "Foi em 2016. Saí de Portugal por causa da exploração a que estava sujeita no local de trabalho e porque não concordava com as diretivas aplicadas." Foi cuidar de uma mulher, de 77 anos, que tinha cancro na boca e demência. Ficou nessa casa oito meses. "Recusou todas as minhas substitutas, pelo que trabalhei oito meses sem folgas." Só saía de casa três horas por semana..Maria sabia que "era uma morte anunciada". "Morreu-me nos braços", conta ao DN. Atualmente, cuida de uma mulher, de 84 anos, que sofre de Parkinson, Alzheimer "e todas as patologias associadas". Diz que praticamente só tem de fazer companhia, pois existe "uma boa rede de cuidados domiciliários".."Tenho de supervisionar os cuidados de higiene prestados pela firma que foi contratada, auxiliar nas refeições, ajudar as transferências (entre a cama, o sofá e a casa de banho). A firma vem cinco vezes ao dia e também temos a senhora da limpeza que ajuda. À noite é que fico sozinha com ela", indica..Como as filhas da doente moram perto, visitam a mãe todos os dias, durante aproximadamente uma hora. "Tenho duas tardes de folga e um dia de fim de semana. Nesse dia ficam cá as filhas", conta a cuidadora, que tira quatro semanas de férias no verão, uma na Páscoa e uma no Natal..Na opinião de Maria, quem trabalha neste regime tem "de se saber defender psicologicamente". "Mas somos humanas e há sempre alguma empatia, senão era impossível cuidar", sublinha, destacando que é uma profissão "muito desgastante". Como teve inglês e francês na escola, Maria adaptou-se bem à língua. Contudo, destaca, esse é um problema para muitas portuguesas que se aventuram neste tipo de trabalho. "Tal como a solidão, estar longe da família.".Para que as candidatas aceitem sujeitar-se a isso, as empresas de recrutamento oferecem bons ordenados. "O salário varia muito, mas tem de ser suficientemente atrativo para uma pessoa deixar o seu país e ir para o estrangeiro. Vão para outro país, com adaptação a novas culturas, rotinas, alimentação, formas de estar", diz Arminda Serrano, sócia-gerente da empresa Quero Marias, que também faz este tipo de recrutamento para Inglaterra, França, Suíça e, mais esporadicamente, Alemanha..Para esta responsável, há uma preferência por portuguesas "dado os bons resultados que normalmente têm". Por um lado, explica, "a capacidade de trabalho surpreende" e, por outro, "somos um povo geneticamente simpático, dedicado, que sabe estar". "Procuram pessoas que vão ficar a morar com o idoso. Querem cuidadores bem formados do lado humano: com paciência, meigos e carinhosos", esclarece Arminda Serrano..Uma opinião semelhante é partilhada por Nuno Pinto, da Vitae Professionals: "Temos boa reputação nesta área. Somos vistos como um povo cuidadoso, que tem uma atenção particular aos idosos." Mas nem sempre é fácil arranjar candidatos com vontade de ir: "Como estamos a falar de emprego não qualificado, a concorrência é maior, nomeadamente em hotéis e restaurantes." Para algumas pessoas, como licenciados em geriatria ou psicologia, esta é muitas vezes "uma porta de entrada para uma carreira profissional na área".."Não tenho vida própria, mas é uma opção".A cuidar de uma idosa na Bélgica, Sofia, 55 anos, recebe quase três vezes mais do que recebia em Portugal como auxiliar de geriatria, mas garante que não foi a parte financeira que a fez sair do país. "O que me levou a ir foi o espírito de aventura, o querer ganhar autoconhecimento e conhecer outras culturas. Ao mesmo tempo, queria fugir de uma situação pesada a nível pessoal", conta-nos, a partir da Bélgica..Viajou de Portugal para França no início de 2017 para cuidar de uma professora de Francês, reformada, de 93 anos. Não sabia dizer mais do que bonjour, au revoir, bonne nuit e merci. Mas deparou-se com "uma senhora muito lúcida, muito inteligente", que lhe ensinou as bases da língua. Sofia tinha de levantar e deitar a cliente, preparar as refeições, tratar da casa, fazer compras e levá-la a dar passeios. "Havia uma empresa para fazer a higiene e dar banhos. Eu ficava mais como dama de companhia e com a parte da afetividade e, ao mesmo tempo, era doméstica.".Apesar da boa relação com a idosa, Sofia diz que os dias eram muito complicados, porque a senhora "tinha uma grande carência da filha, que a tornava depressiva e compulsiva". Telefonava-lhe 80 vezes por dia. As noites também eram muito difíceis, porque falava bastante. Cansada e incomodada com o atrevimento de um dos trabalhadores da quinta, a portuguesa falou com a empresa para mudar de cliente. Foi para o Luxemburgo fazer férias de uma colega, com uma senhora de 95 anos. Seguiram-se outros clientes, geralmente pessoas abastadas, que viviam em grandes vivendas ou quintas..Em quase todos os sítios, o sistema é semelhante: "O ritmo é nove a dez horas de folga por semana. Basicamente, trabalho 24 horas durante seis dias por semana no mesmo espaço, com a mesma pessoa. E por detrás de cada pessoa há uma máquina, uma família. Psicologicamente é muito pesado. Fisicamente depende das pessoas." Sofia reconhece que quase não sobra tempo para si. "Não tenho vida própria, mas é uma opção.".Quem vai prestar estes cuidados enfrenta muitos desafios: "A discriminação e, muitas vezes, a alienação, porque as pessoas que vamos cuidar veem-nos como estranhos e estrangeiros. Enfrentamos a degradação do peso da idade e das doenças. E a barreira linguística." Mas este é um trabalho que também lhe dá prazer. "Aprende-se muito. São culturas e formas de estar diferentes. Conhecemos hábitos seculares, a história dos países. Sinto-me mais rica culturalmente", declara..Há casas em que guarda "recordações terríveis, mas maravilhosas também". Como a de um arquiteto belga, de 73 anos, que sofria de aterosclerose com distrofia. Um homem "totalmente dependente", que se queria suicidar. Um homem "extremamente inteligente" e "extremamente exigente". Um homem com um "humor negro incrível". "Deixou-me um legado, quer na sua maneira de estar na vida quer na gastronomia belga.".Neste ano, Sofia mudou para outra empresa, deixando de fazer descontos em Portugal para passar a fazer na Bélgica, onde também existe uma grande carência de cuidados especializados nesta área. Ainda tem dúvidas em relação às cláusulas contratuais, mas espera que tudo se resolva. Cuida de uma senhora, de 96 anos, que é "semiautónoma". Não gosta de a ouvir falar português, pelo que somos obrigadas a interromper a conversa várias vezes. "Tem um carácter muito vincado. Diz que eu pareço alemã, porque trabalho com muita precisão, mas ela também é assim. É muito exigente e inconstante. Sente-se marginalizada pelos filhos."."Só se não tiver outra hipótese".Graça Adão, de 60 anos, está na Alemanha a trabalhar no apoio domiciliário a pessoas com deficiência física, mas também já esteve a cuidar de idosos em regime interno. Depois de 22 anos a trabalhar num lar em Portugal, emigrou para a Bélgica, onde era dama de companhia de uma idosa. Dois meses depois, arranjou trabalho a cuidar de outra idosa, de 89 anos, em Darmstadt, na Alemanha. Já tinha passado quase 20 anos no país, portanto voltou onde já tinha sido feliz.."Não há pessoas para fazer este tipo de trabalho no país. Não há predisposição para cuidar de idosos", explica. Mesmo quando têm razões para despedir, "as empresas sujeitam-se, porque não há pessoas para trabalhar". E gostam muito dos portugueses. "Somos mais humanos. Temos outra maneira de lidar com os mais velhos.".Graça gostava do que fazia, mas assume que "era muito stressante, porque eram muitas horas com a mesma pessoa". Embora a mulher estivesse bem fisicamente, tinha uma "demência muito agressiva verbalmente". "Era muito desgastante. Os filhos mandavam-me tirar férias de três em três meses, porque reconheciam o esforço." Para que tivesse algum tempo livre, conta, a mulher ia para um centro de dia das 09.00 às 16.00. "Ao fim de semana, a família ia lá durante uma hora, para eu poder esticar as pernas.".Trata-se de uma família que não tem problemas financeiros. Além do ordenado que recebia (1500 euros limpos), pagavam 1500 euros ao centro de dia e 500 euros a uma senhora que pontualmente ia buscar a mulher para tomar café. "Os filhos fazem tudo pela mãe. Não olham a despesas. Só a metem num lar se forem obrigados.".Embora o balanço seja "positivo", Graça Adão diz que, "a longo prazo, só voltava ao mesmo regime se não tivesse outra hipótese". Financeiramente compensava mais, confirma ao DN, "mas não é só a parte financeira que conta". Prefere fazer domicílios, com turnos de 12 horas em casa dos doentes. E a escassez de mão-de-obra é tão grande que o horário é de 155 horas mensais, mas costuma fazer 250. "Às vezes até me perguntam se não tenho uma irmã gémea para vir para cá."