À segunda tentativa no parlamento português, à quinta nas cortes espanholas, os dois países preparam-se para avançar com a despenalização da morte medicamente assistida quase em simultâneo. No país vizinho a nova lei ainda tem de passar pelo Senado, por cá falta subir a votação final global e passar o crivo do Presidente da República. Mas, num e noutro caso, as propostas passaram a primeira votação por uma confortável maioria, com o sim à eutanásia a estender-se das bancadas da esquerda aos liberais. As duas propostas ainda podem sofrer alterações, mas não são previsíveis mudanças significativas..O quadro legal desenhado nos dois países tem muitas semelhanças, permitindo a morte medicamente assistida em caso de doença incurável ou doença crónica muito grave associada a grande sofrimento, embora a delimitação tenha algumas nuances, com a lei espanhola a definir mais concretamente o que significam estes termos, e a portuguesa a deixar algum espaço à interpretação científica e médica. A proposta nacional - consensualizada num grupo de trabalho e que terá agora de ser ratificada na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais - obriga ao parecer de dois médicos e uma comissão de verificação, tal como o articulado espanhol. Com a diferença de, na lei portuguesa, ser obrigatória a consulta de um terceiro clínico caso se levantem dúvidas sobre a capacidade do paciente para tomar a decisão. Uma diferença significativa prende-se com a possibilidade de, na lei espanhola, o processo poder concluir-se se o paciente perder a consciência, desde que antes tenha manifestado essa vontade expressa, e por escrito. No texto português é condição essencial que o requerente esteja consciente no momento da morte medicamente assistida. São duas propostas bastante fechadas quanto aos requisitos a garantir e os procedimentos a adotar, longe de quadros legais mais abertos, como os que vigoram na Holanda ou na Bélgica..A concretizar-se a aprovação será a primeira vez, nos chamados grandes "temas fraturantes", que os dois países caminham praticamente lado a lado. A título de exemplo o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi aprovado cinco anos antes em Espanha (2005 versus 2010), a adoção por casais gay foi aprovada dez anos antes pelos espanhóis (2005 versus 2015). A despenalização do aborto data de 1985 em Espanha, 2007 em Portugal. Previsivelmente a lei espanhola entrará em vigor em março/abril, enquanto a portuguesa prevê, a partir do momento em que for publicada em Diário da República, 90 dias para regulamentação e mais 30 para ser posta em prática. Finalizada no grupo de trabalho, a proposta portuguesa poderá, em teoria, ir a votação já nesta sexta-feira, mas a possibilidade de um novo confinamento poderá agora atrasar o processo legislativo..Se o conteúdo é próximo, a própria aprovação tem semelhanças, com os liberais a juntarem-se à generalidade da esquerda na aprovação do diploma. Da autoria do PSOE, a proposta espanhola foi aprovada com 198 votos a favor, 138 contra e duas abstenções, com o Ciudadanos ("Somos liberais e somos a favor da liberdade", justificou Inés Arrimadas), Juntos pela Catalunha e CUP a juntarem-se ao PSOE e Unidas Podemos. À direita o PP, e o Vox, de extrema-direita, votaram contra, assim como os dois deputados da União do Povo Navarro..Por cá, a votação na generalidade, a 20 de fevereiro de 2020, levou à aprovação de cinco projetos de lei. O do PS foi o que recolheu mais votos a favor (128), enquanto o do BE teve 126, o do PAN 122, e os do PEV e da IL 115. Todos os partidos proponentes votaram a favor ou abstiveram-se na votação dos restantes projetos. Sem posição oficial, o PSD dividiu-se (a maioria dos deputados votou contra, oito parlamentares votaram favoravelmente todos os projetos, entre eles o líder do partido, Rui Rio), o CDS, o PCP e o Chega votaram contra. No PS oito deputados votaram contra e sete abstiveram-se.. Quem pode pedir eutanásia? Quais os requisitos obrigatórios?.Em Portugal:.O texto aprovado pelo grupo de trabalho que consensualizou os cinco projetos de lei aprovados em fevereiro de 2020 estabelece que podem recorrer à eutanásia pessoas "em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal". Ao contrário do texto espanhol, o português não define em termos precisos os conceitos que são invocados, deixando espaço à interpretação dos médicos. A morte medicamente assistida - feita obrigatoriamente com intervenção de profissionais de saúde - tem de ocorrer por "decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida". Os pedidos só podem ser apresentados por "cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional"..Em Espanha:.Pode recorrer à eutanásia quem sofra de uma "doença grave e incurável" ou "doença grave, crónica e incapacitante". Estes termos são definidos no preâmbulo do diploma - a enfermidade grave e incapacitante refere-se a limitações na autonomia física e atividades da vida diária da pessoa, na sua capacidade de expressão e relação, associadas a um sofrimento físico e psíquico constante e intolerável para o próprio, com a certeza ou grande probabilidade de que estas limitações venham a persistir no tempo, sem possibilidade de cura ou melhoria assinalável. O pedido de morte assistida tem de resultar de uma vontade "livre, voluntária e consciente do paciente, manifestada no pleno uso das suas faculdades". Os pedidos podem ser apresentados por cidadãos espanhóis, com residência legal ou registo de residência há mais de 12 meses e maiores de idade..Como decorre o processo?.Em Portugal:.A proposta votada no grupo de trabalho prevê um médico orientador - que pode ser o médico pessoal do paciente, o médico de família ou um especialista na patologia que afeta o doente -, que acompanha o processo clínico do início ao final. Cada pedido de eutanásia tem de passar também pelo crivo de um segundo médico (obrigatoriamente especialista). Neste ponto é introduzida uma ressalva que não consta da lei espanhola - caso se levantem dúvidas sobre a capacidade de o requerente manifestar uma vontade livre e esclarecida sobre o pedido é obrigatória a consulta de um médico especialista em psiquiatria. Caso este confirme esta situação, o processo é cessado. Um parecer negativo de qualquer um dos clínicos encerra o processo, sem prejuízo de o requerente poder avançar com novo pedido de abertura..Em Espanha:.A proposta define um "médico responsável" pelo processo que, uma vez recebido o pedido, se reúne com o paciente num prazo de dois dias para o informar sobre diagnóstico, "possibilidades terapêuticas e resultados esperados, assim como possíveis cuidados paliativos". Depois, num prazo mínimo de 24 horas, o requerente tem de reafirmar o pedido caso queira prosseguir. Se for o caso, o processo é entregue a um médico consultor (especialista na patologia de que sofre o requerente), a quem caberá analisar a história clínica e examinar o paciente num prazo máximo de dez dias. Se o parecer também for favorável, o caso é comunicado à Comissão de Avaliação e Controlo, à qual cabe averiguar a correção legal de todo o processo..Como e onde pode ser praticada a morte medicamente assistida?.Em Portugal:.O texto estabelece que "o médico orientador informa e esclarece o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a antecipação da morte" - a "autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente ou a administração pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito mas sob supervisão médica, sendo a decisão da responsabilidade exclusiva do doente". No caso de o doente "ficar inconsciente antes da data marcada para a antecipação da morte, o procedimento é interrompido e não se realiza, salvo se o doente recuperar a consciência e mantiver a sua decisão". Quanto ao local, a escolha "cabe ao doente". Pode ocorrer nos estabelecimentos do SNS ou do setor privado e social. Se a escolha recair sobre outro local, o médico orientador deve certificar que dispõe de "condições clínicas e de conforto"..Em Espanha:.O ato da morte medicamente assistida pode assumir uma de duas formas - "a administração direta ao paciente de uma substância por parte do profissional de saúde"; ou "a prescrição ao paciente, por parte de um profissional de saúde, de uma substância, de forma que este a possa tomar". A morte medicamente assistida fica incluída nos serviços prestados pelo Serviço Nacional de Saúde e terá financiamento público. Pode ser feita em "estabelecimentos de saúde públicos, privados, do setor social ou em casa". Ao contrário do texto português, é possível avançar com a eutanásia se o paciente ficar inconsciente durante o processo, desde que essa vontade tenha ficado expressa pelo próprio, por escrito..Quem fiscaliza?.Em Portugal:.Fica prevista a criação de uma Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte (CVA), com a obrigação de conferir - a priori e a posteriori - a conformidade legal das várias etapas e a prerrogativa de travar o processo. Antes da concretização da morte medicamente assistida, esta comissão tem de se pronunciar sobre o cumprimento de todos os requisitos, num prazo máximo de cinco dias úteis. Em caso de parecer desfavorável da CVA, o procedimento em curso "é cancelado, podendo ser reiniciado com novo pedido de abertura". Não há possibilidade de dispensa de consulta a esta comissão..Em Espanha:.O diploma prevê a criação de uma Comissão de Avaliação e Controlo (haverá uma por cada região autónoma), à qual caberá a última certificação do processo antes da concretização da morte medicamente assistida. A comissão designa dois membros - um médico e um jurista - encarregues de verificar o cumprimento de todos os requisitos. O processo pode ficar nesta comissão por um prazo máximo de 11 dias. Em casos excecionais, perante a morte ou perda de capacidades iminentes, pode ser dispensada a avaliação por parte desta comissão. Estas comissões serão também o órgão de recurso, quando o pedido de eutanásia seja indeferido por algum dos médicos. Já uma recusa da própria comissão pode ser objeto de recurso nos tribunais administrativos..A objeção de consciência.Em Portugal:."Nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a praticar ou ajudar ao ato de antecipação da morte de um doente se, por motivos clínicos, éticos ou de qualquer outra natureza, entender não o dever fazer, sendo assegurado o direito à objeção de consciência a todos que o invoquem" - o que pode ser feito "a todo o tempo e não carece de fundamentação"..Em Espanha:.O texto espanhol estabelece que os profissionais de saúde podem invocar objeção de consciência à prática da eutanásia, a apresentar por escrito. Será criado um registo dos profissionais objetores de consciência, por forma que as autoridades de saúde "possam garantir uma adequada gestão da prestação de ajuda para morrer"..Qual a qualificação legal da eutanásia?.Em Portugal:.O texto português estabelece que "para efeitos de definição de causa de morte da pessoa segura deve constar da certidão de óbito a antecipação da morte", ficando explicitamente referido que esta não pode ser fator de exclusão para efeitos de contratos de seguro de vida..Em Espanha:.A morte medicamente assistida é legalmente qualificada como "morte natural", o que afasta dúvidas quanto aos contratos de seguros de vida.