Por que insiste Trump no tratamento com hidroxicloroquina?

O remédio para a artrite reumatóide e para o lúpus continua a ser aconselhado pelo presidente dos EUA, apesar de não haver evidências científicas suficientes.
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Na conferência de imprensa de domingo sobre o coronavírus, Donald Trump voltou mais uma vez a fazer a apologia da administração da hidroxicloroquina. "O que têm a perder? Se funcionar seria uma pena se não o fizéssemos mais cedo", afirmou.

Logo de seguida, como em muitas das suas afirmações, uma ressalva: "O que é que eu sei? Não sou um médico, mas tenho senso comum." A lógica de todo o conselho evapora-se mais rápido que uma gotícula.

Tem sido este o discurso do presidente dos Estados Unidos desde meados de março e o certo é que a agência dos medicamentos norte-americana, FDA, acabou por aprovar a utilização nos paciente com covid-19 deste remédio tomado por quem padece de lúpus e artrite reumatóide e derivado da cloroquina (usado há décadas para o tratamento da malária). Uma medida tomada 11 dias depois de Trump ter anunciado que o organismo iria fazê-lo.

Os resultados dos testes são até agora inconclusivos e é isso que Anthony Fauci, o único perito na matéria na equipa de combate à pandemia da Casa Branca tem dito. No sábado, segundo relata a Axios, a questão levou à primeira discussão acesa entre Fauci e um conselheiro de Trump, no caso Peter Navarro.

Este, segundo conta a Axios, distribuiu um dossiê na sala e disse que os estudos que viu mostram "uma clara eficácia terapêutica'".

"Nunca houve um conflito nas reuniões da equipa de intervenção como o de ontem", disse uma fonte que terá assistido ao embate. "As pessoas falam e há um debate robusto, mas nunca houve um confronto."

Fauci voltou a repetir a mensagem de que são necessários mais estudos e que o que existe são "provas circunstanciais", mas Navarro, doutorado em Economia e conselheiro de Trump para os assuntos do comércio, replicou: "É ciência, não são casos episódicos". E de seguida acusou Fauci de ter estado contra a proibição das viagens da China, o que não é verdade.

Confrontado na CNN com este esgrimir de argumentos entre um especialista e um leigo, Navarro argumentou que é "um cientista social" e que, como tal, sabe "ler estudos estatísticos, sejam em medicina, direito, economia ou seja lá o que for".

Depois de no dia anterior Trump ter dito que, se ficasse infetado "talvez" tomasse hidroxicloroquina, anunciou no domingo a compra de 29 milhões de comprimidos desse fármaco. "Muitas farmácias dispõem deles por prescrição médica e também não são caros. Também estamos a enviá-los para vários laboratórios, os nossos militares, estamos a enviá-los para os hospitais, estamos a enviá-los para todo o lado."

Sobre os receios da comunidade médica, Trump disse o seguinte: "Quero que o experimentem, e pode funcionar e pode não funcionar. Mas se não funcionar, não se perde nada ao fazê-lo. Nada. Porque sabemos a longo prazo o que eu quero, quero salvar vidas."

O presidente da Associação Americana dos Médicos, Patrice Harris, em declarações à CNN, discorda do presidente: ""Você pode perder a sua vida. Não está provado. Neste momento, simplesmente não temos os dados".

E, no final da conferência, quando um jornalista tentou saber o que Anthony Fauci tinha a dizer, Trump não passou a palavra, tendo alegado que o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infeciosas já tinha falado "sobre o assunto 15 vezes".

Motivo de esperança

O motivo mais bondoso é que Donald Trump quer dar esperança aos norte-americanos e, como tal, pegou na história que teria visto na Fox News. Mas não só. De acordo com o New York Times, foi o bilionário Larry Ellison quem lhe chamou a atenção para o tema.

Segundo conta o Guardian, Gregory Rigano, o advogado que disse no canal televisivo a falsidade de que o tratamento experimental tinha "uma taxa de cura de 100 por cento" já tinha posto a circular, juntamente com um investidor em criptomoeda, James Todaro, um documento a tecer loas à hidroxicloroquina.

O Politico vai mais longe e explica que Rigano e Todaro iniciaram este debate no Twitter junto com um autodenominado filósofo, Adrian Bye, e que da discussão convertida num Google Doc, com o (abusivo) selo de duas universidades e da Academia das Ciências o documento foi parar à Fox News e o resto é história.

"Compreendo perfeitamente porque é que o presidente insiste nisso", disse ao New York Times Joshua Rosenberg, médico a trabalhar nos cuidados intensivos do Brooklyn Hospital Center. "Ele é o presidente dos Estados Unidos. Ele tem de dar esperança. E quando se está numa situação sem esperança, as coisas correm muito mal. Por isso, não o culpo por insistir, mesmo que não haja muita ciência por detrás disso, porque é, neste momento, a melhor e mais disponível opção de utilização."

Uma opinião que está longe de ser pacífica entre os médicos.

As ligações com a indústria farmacêutica

A outra explicação é menos espiritual e mais dada ao currículo de Donald Trump: a de que está a vender um medicamento para que o próprio ou os seus associados obtenham lucros.

As constantes referências do presidente ao fármaco tiveram como resultado uma corrida aos medicamentos. Segundo a ProPublica, esvrevia há mais de duas semanas, pacientes norte-americanos com lúpus já estavam com dificuldade em aceder ao remédio.

Dias depois, um grupo pró-Trump chamado Job Creators Network lançou uma petição e publicidade no Facebook para que a hidroxicloroquina passasse a estar disponível.

A Job Creators Network foi fundada em 2011 pelo bilionário Bernard Marcus um doador do Partido Republicano que anunciou a intenção de gastar parte da fortuna para ajudar a reeleger Trump.

Por sua vez, a Job Creators Network tem sido em parte financiada pela Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PhRMA), uma associação da indústria farmacêutica que tem entre os seus membros a Novartis, a Teva e a Bayer.

Segundo o Sludge, site de investigação norte-americano, a PhRMA doou 500 mil dólares à Job Creators Network em 2017.

De acordo com o mesmo meio, a Novartis, a Teva e a Bayer estão na primeira linha para fornecer hidroxicloroquina para testes clínicos, e poderão lucrar se o medicamento for adoptado como um tratamento comum contra o coronavírus.

Cabe aqui também recordar que a suíça Novartis pagou 1,2 milhões de dólares ao então advogado pessoal de Donald Trump, Michael Cohen, para ter acesso ao presidente. O advogado, entretanto condenado e a cumprir pena de prisão, testemunhou no Congresso que terá falado com responsáveis da farmacêutica meia dúzia de vezes, mas que se recusou fazer lobby.

Outra empresa que está associada a Trump é a francesa Sanofi, da qual detém ações através do fundo Dodge & Cox. A empresa francesa também produz um medicamento com hidroxicloroquina.

Mas como aponta o advogado George Conway, crítico de Trump e marido de Kellyanne Conway, assessora do presidente, a empresa não detém a patente pelo que sugerir que Trump está a fazer isto pelo lucro enquanto acionista não tem sentido.

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