Como acabará a história de Ângela e de Hugo? O casal que queria muito ter filhos mas que a doença de Hugo não deu tempo ao tempo para que tal acontecesse. Hugo chegou mesmo a fazer recolha de sémen para criopreservação, caso os tratamentos ao tumor que lhe foi descoberto o deixassem estéril. Mas antes de entrarem em processo de inseminação, a 25 de março de 2019, morreu. Desde essa altura que a mulher, Ângela, luta para poder engravidar do marido, Hugo. O gabinete jurídico do Hospital São João, no Porto, onde Hugo esteve a ser tratado contra o tumor e fez a recolha de sémen, decidiu que não, de acordo com a lei, e estava pronto para, ao fim de um ano, destruir o sémen, mas agora aguarda a decisão das entidades competentes, políticas e judiciais..A Lei n.º 32/2006 sobre procriação medicamente assistida (PMA) refere no artigo 22.º, que "após a morte do marido ou do homem com quem vivia em união de facto, não é lícito à mulher ser inseminada com sémen do falecido, ainda que este haja consentido no ato de inseminação"..No número dois do mesmo artigo lê-se que "o sémen que, com fundado receio de futura esterilidade, seja recolhido para fins de inseminação do cônjuge ou da mulher com quem o homem viva em união de facto é destruído se aquele vier a falecer durante o período estabelecido para a conservação do sémen". E, no número 3, que, "porém, é lícita a transferência post mortem de embrião para permitir a realização de um projeto parental claramente estabelecido por escrito antes do falecimento do pai, decorrido que seja o prazo considerado ajustado à adequada ponderação da decisão"..Há médicos e juristas que defendem que a lei é clara quanto ao facto de uma mulher não poder engravidar sem ter havido processo de inseminação. Mas outros há que argumentam que este articulado está desadequado da realidade, e que é "inconstitucional", pois contraria a alteração feita à Lei n.º 32, em 2016, que confere a qualquer mulher o direito de engravidar, seja viúva ou solteira, recorrendo a um banco de esperma..Para estes, esta alteração mudou o paradigma da procriação medicamente assistida e contrapõem: "Se uma viúva pode ir a um banco de esperma e engravidar de um dador anónimo, que se calhar até já pode ter morrido, porque não pode engravidar do marido que morreu, mas cujo sémen foi recolhido e está criopreservado?".. A questão que agora se impõe com a história de Ângela e Hugo tomou forma de uma batalha legal, porque do ponto de vista da ética médica parece nada haver mais forte do que a vontade do casal, testemunhada por amigos e familiares. Mas, na verdade, poderá a viúva de Hugo engravidar do marido? Como acabará este caso? .O juiz desembargador Eurico Reis confirmou que, quando era presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), foi analisado um caso deste tipo, mas com contornos diferentes. Daí ter recebido parecer negativo. "Havia um litígio entre a companheira do elemento masculino que fez recolha de sémen e os pais deste, o que não acontece agora. E, nesta altura, penso que terá acontecido em 2012, ainda não tinha havido a alteração de 2016 em que permite a qualquer mulher, viúva ou sozinha, engravidar.".Por seu lado, o jurista André Dias Pereira, que agora integra o CNECV, afirmou ao DN: "Se o caso tivesse ido a tribunal, se calhar já estaria resolvido, com uma interpretação da lei que tivesse em conta os princípios." O jurista contou que o caso já foi abordado nas suas aulas de mestrado por alguns alunos e "defendi esta mesma posição", argumentando: "Se uma viúva pode recorrer a um banco de esperma, a um dador anónimo, porque não pode recorrer a um projeto parental, que está escrito e que foi desejado?" André Dias Ferreira sustentou ainda: "Não é um caso exatamente igual ao de uma viúva que decide engravidar, que vai a um banco de esperma e se sujeita ao sémen de um dador anónimo, não é um caso exatamente igual ao de uma mulher solteira. Esta criança vai ter um pai. A situação não me choca, não é extraordinária. Já aconteceu em vários países que consagram as situações post mortem na legislação, como em Espanha e no Brasil"..Em Portugal, a Lei n.º 32/2006, no seu artigo 22.º refere que o sémen nas situações post mortem deve ser destruído. O jurista justifica: "Não estou a criticar ninguém que teve de intervir neste caso, provavelmente cada um está a desempenhar o seu papel. Compreendo que os juristas do hospital tenham tido uma postura cautelosa, na medida em que há uma letra da lei que diz não. Mas se o caso tivesse ido a tribunal em vez de ir à TVI talvez o desfecho já fosse outro." No entanto, e apesar de poder haver várias interpretações, André Dias Ferreira deixa claro: "Que se faça a alteração à lei, porque sempre é melhor uma situação estar na letra da lei.".A sociedade tem de saber o que quer quando faz uma alteração à lei.Paula Martinho da Silva, jurista, especialista em saúde e ciências da vida, presidiu o CNECV de 2003 a 2009, e argumenta: "Para mim, a lei, tal como está, é clara. Proíbe a inseminação pós-morte em qualquer circunstância e o sémen recolhido deve ser destruído. Tenho dificuldade em perceber como é que um juiz pode decidir, face a esta clareza da disposição legal, de forma diferente. A não ser que haja quaisquer outras circunstâncias ou factos de que não tenhamos conhecimento ou que estejam a escapar-nos neste caso.".Um caso que já reuniu quase cem mil assinaturas numa petição pública para que o assunto seja discutido em sede parlamentar e que já levou o partido do governo a assumir estar disposto a apresentar uma proposta de alteração à lei para que situações como esta, pós-morte, sejam contempladas. Reações que fazem a jurista lançar um alerta: "A alteração de qualquer lei, mas sobretudo das que têm subjacentes questões éticas profundas e decisões, que também são da própria sociedade, não pode ser revista de ânimo leve.".Paula Martinho da Silva defende que, numa situação destas, a sociedade tem de se questionar sobre o que quer. "A lei da PMA já foi alterada várias vezes desde 2006, penso que a última terá sido em 2017, sendo assim, o que pensa a sociedade de diferente desde essa altura?"."Só vejo duas possibilidades para se fundamentar a mudança numa lei: ou a técnica mudou, havendo novas que exigem um novo olhar sobre a sua prática, havendo que alterar em conformidade. Ou existe uma alteração profunda na forma como a sociedade olha para determinados aspetos importantes relativos à PMA. Por exemplo, sobre o anonimato ou não, sobre a investigação em embriões, sobre a gestação de substituição. Se agora se coloca a questão da inseminação pós-morte, temos de pensar bem no que mudou na forma de olhar da sociedade que motive a sua discussão, não pode ser um caso de um particular ou a vontade de um conjunto de particulares.".Na perspetiva da jurista, "não podemos enveredar pelo caminho em que hoje se muda uma lei, amanhã temos de mudar outra para satisfazer outra vontade e depois outra. Temos de evoluir, as leis podem e devem ser mudadas, mas não sempre que alguém entenda que o seu caso particular não está contemplado"..Paula Martinho da Silva é perentória, apesar de admitir que o caso é difícil e sensível: "A lei é clara nesta situação e não podemos andar a mudar as leis todos os dias, nem por vontade de um particular ou conjunto de particulares. Tal criaria uma grande instabilidade jurídica.".Antes de uma alteração deve haver uma reflexão profunda sobre o tema.A professora de ética médica na Faculdade de Medicina de Coimbra e ginecologista-obstetra na área da PMA, Margarida Silvestre, concorda que "para este caso concreto a legislação é muito clara. Sou médica, não sou jurista, mas olhando para a lei não vejo que haja condição para se fazer o que é pretendido". "Há juristas que dizem que esta pode ser uma situação de exceção, mas a lei é muito taxativa, pois diz que a amostra de esperma só pode ser levantada pelo próprio e que em caso de falecimento o esperma tem de ser destruído." Ou seja, "é proibido fazer inseminação pós-morte. Percebo que os responsáveis do Hospital São João não tenham disponibilizado o esperma à viúva", comenta..Uma situação que para a professora de Ética Médica é necessária. "Na biologia a vida começa com o processo de fecundação, quando este termina temos uma nova vida, um embrião, que tem de ser protegido juridicamente dos gâmetas, que são só potencial para uma nova vida. São células, ainda não são um novo ser. Tem de haver uma proteção superior em relação aos gâmetas", defende.."A lei em vigor contempla situações em que o elemento masculino autorizou que embriões fecundados pelo seu esperma possam ser transferidos após a sua morte, mas não contempla isso em relação aos gâmetas" e para haver qualquer alteração à lei relativamente a este aspeto a professora e médica na área da fertilidade defende que deve "haver uma reflexão bastante mais profunda do que uma análise superficial de um caso, sobre o qual poderemos não conhecer todos os contornos"..Margarida Silvestre afirmou ao DN que esta reflexão tem de envolver "equipas multidisciplinares, médicos, geneticistas, legisladores e políticos", pois é um tema que coloca muitas questões. "Temos de pensar na pessoa que faleceu, se era mesmo sua vontade ser pai, esta vontade tem de ser expressa, sem dúvidas, porque a pessoa pode ter um projeto se estiver presente e não o ter já numa circunstância pós-morte. Temos de pensar também na criança e em todas as questões que se colocam, até do ponto de vista dos direitos perante outros herdeiros. Temos de pensar na viúva, que, por vezes, e numa fase de luto, pode não estar a tomar uma decisão pensada, mas mais emotiva.".Uma alteração à lei terá de pensar em todas as questões, não só relativas a um caso concreto, mas à generalidade das situações que possam aparecer em situações pós-morte. "Temos de pensar até que poderá haver outros casos que integrem motivos menos nobres, em termos de desejo e de intenção, do que as deste caso. Evidentemente que isto nos choca, mas pode acontecer. A lei é geral e abstrata e tem de estar preparada para defender os interesses de todas as pessoas em jogo, e não só de algumas.".A médica de Coimbra concorda igualmente que este caso toca as pessoas, que se solidarizam logo com o sofrimento dos outros, mas "há que ter capacidade para nos afastarmos e pensar este caso de forma analítica e não tão emocional. Se vamos excessivamente pelas emoções poderemos perder a objetividade e, em situações desta natureza, não a podemos perder". Por isso, defende. "pode haver alterações à lei, mas tem de haver antes uma discussão profunda sobre o assunto na nossa sociedade, e esta ainda não foi feita"..A lei é imperfeita e deve ser alterada.A história de Ângela e Hugo está a suscitar este debate. Pode uma viúva engravidar do marido, mesmo que só haja sémen criopreservado? Não se sabe ainda que mudanças pode levar a sociedade portuguesa a fazer e que decisões podem advir do poder político e dos legisladores. Para já dividiu olhares, leituras, opiniões de médicos e de juristas. Miguel Oliveira e Silva, ginecologista-obstetra, também ex-presidente do CNECV, não tem dúvidas de que a vontade de Ângela deveria "estar consignada na atual lei. Isto só prova que a lei é imperfeita e que deveria ser mudada"..Para o professor de Ética Médica na Faculdade de Medicina de Lisboa "faz todo o sentido que numa situação em que há uma relação afetiva estável, testemunhada por profissionais de saúde, possa haver inseminação pelo marido, companheiro, namorado, que entretanto morreu". Do ponto de vista da ética médica considera "não haver qualquer situação, que se comprova que havia uma relação afetiva estável e que era intenção óbvia do companheiro"..Se integrasse o CNECV proporia mesmo - "e ficaria muito contente que estivessem de acordo comigo - uma exceção à lei, porque a ética tem de saber abrir exceções e convencer urgentemente o legislador, quando há que modificar a lei".."Esta proibição pós-morte na lei da PMA já é inconstitucional".Para o juiz desembargador Eurico Reis "não é ético manter a norma que impõe a destruição do sémen pós-morte na lei da PMA". Eurico Reis foi um dos cidadãos que assinaram a petição pública já entregue no Parlamento para que o assunto seja debatido e defende que o facto de Ângela não poder engravidar do marido só acontece porque "vivemos num mundo em que se olha para a letra da lei e não para o seu espírito. Quem tiver uma perspetiva global do ordenamento jurídico vê claramente que este artigo de proibição, neste momento, já é inconstitucional"..O juiz, que também já foi presidente do Conselho Nacional para a Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) argumenta mesmo: "Se a lei não fosse tão lida à letra, este caso já estaria resolvido, mas, em Portugal, infelizmente, há demasiados Velhos do Restelo. E é preciso mudar a lei. Assim tudo fica definido preto no branco". Eurico Reis é de opinião que "se está a complicar demasiado um caso em que não se está a fazer mal a ninguém. Está a dar-se felicidade a uma pessoa. Está a trazer-se crianças ao mundo, que são desejadas e amadas. Esta é a grande vantagem de situações como esta"..Para o juiz "não há tempo a perder e, a partir do momento em que seja apresentada uma proposta de alteração à lei no Parlamento, a alteração legislativa é mais rápida. A discussão aprofundada pode ser feita depois"..A história de Ângela Ferreira e Hugo foi contada em minissérie pela TVI. Amor sem Fim, assim se intitulava o trabalho de Alexandra Borges. Nele foram divulgadas mensagens de Ângela e Hugo que testemunhavam a vontade de ter um filho, foram recolhidos depoimentos de amigos e familiares que comprovavam a relação afetiva entre ambos. Se não for possível em Portugal, Ângela afirmou que irá a Espanha, onde a lei não proíbe a inseminação pós-morte.