«Conheço tantas moças que fizeram isso... E logo com ela é que calhou? Nunca pensei que fosse possível isto chegar a este ponto.» É uma prima que fala, dividida entre a reserva e a vontade de ajudar. «Ela contou-me tudo, sabia que estava grávida, mas não me disse o que ia fazer. Não imagino como isto vai acabar. E nunca lhe perguntei o que ela espera... tenho medo da reacção.».E como será a reacção de quem, aos 17 anos, se descobre acusada de um crime com pena até três anos? Quando o ponto a que se chegou é o da sala de tribunal, do palco mediático em que, queira ou não, a arguida de um processo destes se encontra, quando não se tem com que pagar a um advogado, quanto mais um gabinete de pesos-pesados, quando não se conhece ninguém e ninguém nos conhece, quando as testemunhas de defesa se resumem à família e a uma amiga, quando nenhum director de polícia e nenhum assessor de procurador perde um minuto a falar do caso?.«A pessoalização deste tema é terrível.» Pelo menos perante o assalto dos media, a advogada Sara Cunha, nomeada oficiosamente para assistir a acusada durante o interrogatório da PJ e agora para a representar no julgamento, defende a sua constituinte com unhas e dentes. «Há uma dupla condenação. É o preço a pagar para o público estar informado. Mas ela quererá passar por isto da forma mais privada possível.».Difícil, quando o processo deixou de estar em segredo de justiça e o corrupio de jornalistas é tal que a escrivã já o tem ali, sobre o parapeito da janela, ao alcance da mão. Quando nomes e moradas e até telefones se colhem sem esforço. Quando as sinuosidades e arestas do sistema se expõem numa sucessão de incredulidades: o enfermeiro que denuncia e quase desaparece dos autos, onde é a 66.ª Esquadra da PSP, no Cacém, que figura como denunciante; o hospital que envia toda a documentação clínica, sem pruridos de confidencialidade; a médica que elabora um relatório completo, ignorando o dever de sigilo; os agentes da 66.ª Esquadra que visitam a paciente no segundo dia do internamento, numa acção que o bastonário dos advogados, José Miguel Júdice, já qualificou de «acto ilegal de investigação criminal», e obtêm a confissão, vertida nos autos como «relatório policial»; a advogada oficiosa que, perante isto, não apresenta mais contestação que a do «merecimento dos autos»..Irresistível pensá-la, à arguida, agora com 21 anos, como condenada por antecipação. Uma espécie de ilustração exemplar dos diversos pesos e medidas determinados por isso a que se dá o nome de «condição social». Uma espécie de símbolo sacrificial, apropriado para cada um dos lados desta barricada, pró ou contra escolha, perfeita porque sempre vítima, seja qual for a perspectiva..Porque é pobre: desempregada, com o liceu a meio, em tempos contratada por uma empresa de mão-de-obra temporária para, por cerca de 400 euros mensais, laborar numa fábrica de automóveis. Porque é filha de uma angolana que trabalha num cabeleireiro e de um pai emigrado, talvez em França, e viveu parte da vida (ou toda?) numa barraca em cimento de trinta metros quadrados, entalada entre uma encosta e uma ribeira de lama, no sopé da urbanização suburbana onde conheceu o namorado que com ela concebeu a dita gravidez. Porque foi num imenso bairro de barracas, a Quinta da Laje, noutro subúrbio, a Brandoa, que na casa de banho do então namorado da mãe se esvaiu em sangue e dores e, diz a acusação, embrulhou o feto num pano encarnado, colocando-o num saco do supermercado Feira Nova, e pediu à irmã de 11 anos que levasse o resultado para o lixo..Porque, diz a acusação, comprou os oito comprimidos de Citotec a uma amiga, a «cinco mil escudos cada um» e oito vezes cinco faz quarenta (200 euros), muitas vezes o preço do medicamento numa farmácia - só os desgraçados gastam assim, por medo e ignorância. Porque não sabia de quantos meses estava e, disse, nunca havia consultado um médico. Porque teve azar, e não há como as vítimas para terem azar. .Podia ser só isto. A tragédia de bairro pobre de subúrbio a que não falta sequer o condimento da origem africana, para reforçar a exclusão. Mas esta tragédia, mesmo normal, quotidiana, tão esquemática e neo-realista que parece inventada para um livro de sociologia barata, tem um rosto. E um nome, mesmo se aqui não os encontram. O rosto e nome da adolescente que entrou só no hospital e que negou ao primeiro polícia que, industriado pelo enfermeiro, a abordou o que ele queria ouvir. Que nunca identificou quem lhe vendeu o Citotec. Que manteve, perante o interrogatório da PJ, que a mãe e o ex-namorado nada sabiam dos factos de que era acusada e em nada a haviam ajudado. .E que disse, dando voz ao relatório dos agentes da polícia criminal: «Apesar de ter sido uma decisão muito difícil, até porque estava consciente de que pôs a vida em perigo, seria um erro deixar nascer uma criança nestas condições.» Há erros imperdoáveis.