Pinocchio, o boneco que só queria ser um rapaz
Era uma vez... um rei. Não, um rei não. Um bocado de madeira. Um pau. Não uma madeira luxuosa, não uma madeira fina. Um pau. Um pau daqueles que se põem na lareira. Para fazer a perna de uma cadeira. Não. Um boneco. Mas não um boneco qualquer, um boneco maravilhoso, que saiba dançar, fazer esgrima e dar saltos. E assim nasceu Pinocchio. O encenador Bruno Bravo lembra-se de, em criança, a mãe lhe contar esta história. E também ele a leu à sua filha. "É um livro de que sempre gostei e que acompanhou o meu crescimento. É um livro que se lê bem à noite porque provoca muito a imaginação", conta.
A vontade de montar um espetáculo a partir de Pinocchio, de Collodi, era antiga, mas só nos últimos anos foi ganhando forma. No palco, quase escuro, estão Geppeto e Pinocchio, ou seja, os atores António Mortágua e Carolina Salles, ele grande, ela pequena, ainda mais pequena num corpo inanimado, braços caídos, cabeça a balançar, uma voz fininha, que podia ser de um ventríloquo ou de uma criança.
Neste processo de trabalho, Bruno Bravo e os membros dos Primeiros Sintomas foram descobrindo que o texto escrito pelo italiano Carlo Collodi - entre 1881 e 1883 - era literariamente muito mais rico do que poderia pensar quem só conhece a versão adocicada pela Disney. Apesar de ser "inequivocamente, um livro escrito para as crianças e sobre a infância" é também muito mais do que isso. Na versão original, Pinocchio morria enforcado como castigo pelas suas inúmeras falhas. Mas, a pedido do editor, Collodi fez com que a Fada do Cabelo Azul salvasse o boneco e o transformasse num rapaz de verdade.
"Há uma dimensão negra e trágica, que nos interessava, assim como todo o lado fantasioso, de sonho e pesadelo", explica Bruno Bravo. E também por isso este não é um espetáculo para crianças. "É um espetáculo, ponto." Ou seja, para o grupo a preocupação era como pegar neste texto que não é de teatro e pô-lo em cena, sem se preocupar com o público a que era dirigido.
"Prometo que vou ser bonzinho"
A redenção final tornou a história de Pinocchio mais adequada para os leitores infantis. Pinocchio, primeiro fantoche manobrado pelas mãos do pai, Geppeto, mas que logo quer ganhar vida e sonha em ser um menino como os outros. "De todos os ofícios do mundo há um só que me interessa: comer, beber, dormir, divertir-me", diz. Não quer ir à escola, quer crescer, quer conhecer o mundo, quer ser livre. "Já estou farto de ser um boneco, acho que já é tempo de ser um homem."
E aí começam as aventuras conhecidas - em vez de ir para a escola, vende o seu caderno para comprar um bilhete para o Grande Teatro de Fantoches onde quase acaba queimado; a ilusão de "plantar" moedas para que cresça dinheiro, porque queria ficar rico mas acaba falido; a tentação irresistível de ir para o paraíso das crianças, onde ninguém tem de estudar e as semanas têm seis sábados e um domingo mas, onde, afinal, acabam por se transformar em burros, de orelhas compridas, a zurrar em vez de falar; a fuga para o mar onde é engolido por um tubarão e o reencontro final com o pai.
E, pelo meio disto tudo, o nariz. O nariz de madeira que cresce sempre que o boneco mente. Há mentiras que têm pernas curtas e mentiras que têm narizes compridos, diz-lhe a fada. Assim são as mentiras de Pinocchio. Para Bruno Bravo, esta história, aparentemente infantil, é, na verdade, "uma alegoria muito forte da condição humana, onde a questão moral é muito presente". Aqui está Pinocchio, sempre dividido entre a sua vontade e as regras que deve cumprir - tal como acontece tantas vezes nas histórias infantis, basta recordar Capuchinho Vermelho que não cumpriu os conselhos da mãe e saiu do seu caminho, distraída a apanhar flores. E, de cada vez, confrontado com os seus erros, Pinocchio promete que daí para a frente vai "ser bonzinho".
"O grande objetivo dele é cumprir-se humano, ser um rapaz - mas no fundo ele cumpre-se um boneco", conclui Bruno Bravo. "Talvez só no início ele seja verdadeiramente livre, quando diz que o que quer é comer e correr atrás dos pássaros." A partir daí, Pinocchio deixa de ser livre para começar a ser pressionado - pelo pai, que quer que ele se porte bem, e pelos outros que estão constantemente a tentar influenciá-lo, e Pinocchio que quer muito ser igual aos outros e fazer tudo o que os outros meninos fazem, obviamente, acaba por deixar os seus desejos de lado. "É um texto que fala muito das regras que a sociedade impõe e que nos põe a pensar no lugar do homem na sociedade. É uma questão que está presente em muitos clássicos: o que somos, o que queremos ser e aquilo que podemos ser, e que fronteira é essa." E, nesta reflexão, Bruno Bravo não consegue evitar lembrar outros heróis - como Ulisses na Odisseia, de Homero, ou Baal, de Brecht.
Crescer é um pesadelo
Crescer é isto, dirão os mais realistas. Crescer é deixar de ser livre e aprender a seguir as regras. E por isso, este é um espetáculo sobre "a violência do crescimento, as sombras, o terror da morte". Como um pesadelo do qual Pinocchio tem dificuldade em acordar. "Levanta-te", ordena-lhe o pai. Acorda.
No palco, Gepetto e Pinocchio estão rodeados por enormes bonecos que são as outras personagens desta história - o coelho, o mocho, o burro, a raposa e o gato, o Arlequim, o Trinca-Fortes (o dono do circo), o Grilo. Podem ser os bonecos no quarto de uma criança. Podem ser marionetas na oficina de Geppeto. Ou podem ter saído do Grande Teatro de Fantoches.
Um dos aspetos de que Bruno Bravo mais gosta neste texto é que, apesar de não ser teatro, tem muito teatro e muitas referências ao universo teatral. "Aquilo que eu gostaria é que não houvesse muitas respostas. Há esta ideia de que isto é um espetáculo dentro do espetáculo, ou que o pai é o responsável por tudo o que está a acontecer, de o Geppeto ser a figura que está a manobrar tudo, ou não, de ser tudo imaginação, ou não." E, apesar dos sustos e de toda a crueldade aqui representada, esse é o verdadeiro espírito da infância: "A infância é quando estamos mais ligados ao teatro, é quando somos dominados pela imaginação." É o tempo do faz-de-conta. Era uma vez um pau, não, um boneco, um boneco que se transforma num "rapaz como todos os outros".
Pinocchio. Primeiros Sintomas
Encenação: Bruno Bravo
Teatro Maria Matos
A partir de hoje e até 5 de março (exceto dia 29), às 21.30; domingo às 18.30
Bilhetes: entre 6 e 12 euros