"As inseguranças, perdi-as todas no momento em que decidi que ia fazer o disco." Assim resume João Vasco o salto por meio do qual se fez autor e compositor: "Houve um momento em que senti a compulsão de me virar sobre mim próprio e seguir em frente com confiança, sem precisar do conselho de mais ninguém.".E assim nasceu 2016, apresentado há uns meses, em estreia, na Casa André de Gouveia, em Paris e no novo Museu dos Coches e já disponível nas lojas e nas plataformas digitais, Spotify incluído. O projeto conta com a colaboração do violinista Pedro Lopes e do violoncelista Fernando Costa, escolhidos "por serem músicos versáteis e capazes de habitar esta estética, na qual é preciso um gesto diferente, mais flexível do que o clássico, mais distante do que aquilo que figura na partitura. Ao mesmo tempo, são capazes de perceber as minhas intenções e orientações, desta feita na qualidade de compositor", pois foi preciso, diz, "trazê-los para o meu universo"..Em 2016, a presença de Sakamoto é explicada pela razão de "ter sido ao ouvir o disco 1996 que eu descobri um estilo que se coadunava com a minha sensibilidade e ter sido aí que redespertou o meu lado - ou instinto - criativo". Mas trata-se de uma influência de modo algum sentida como ameaça à sua própria personalidade, pois "é uma homenagem sincera e grata, no sentido em que foi ele quem me retirou da esfera exclusiva de intérprete". Fala antes de "uma essência que eu soube extrair e tornar minha. Pelo menos é o que me dizem!" (risos). De qualquer modo, ressalva, "há por ali muitas melodias que são 100% minhas"..Quando cita ou evoca, assume "essa pessoa que tem estas pontes todas dentro, que tem no ADN esta gente toda que está aqui a homenagear e que se identifica com todas estas músicas". Essa e outras homenagens assomam, como "citações, evocações ou gestos" em quase todas as 11 faixas: "A sua função é muito lapidar: homenagear. Sem querer disfarçar quando ela surge e está ali". Pretendeu uma música "que fugisse, quer à soberba da intelectualidade quer a uma simplicidade que fosse já facilidade", através da qual deseja "chegar ao maior número possível de pessoas"..O método de composição foi simples: "Fiz uma obra de cada vez. Escrevia, terminava e passava para a seguinte." Difícil foi "saber quando estava terminada, aquele momento de angústia em que o pintor se pergunta: 'Qual será a última pincelada?'". Já os locais foram menos lineares: "Viagens de avião, tempos de espera nos aeroportos, quartos de hotel... Com um iPad e uma canetinha, trabalha-se em qualquer lado e como, desde o CD Alémfado [de 2011] tenho feito muitas digressões, pude aproveitar esses tempos mortos que assim se tornaram muito vivos!".João Vasco sabe que, "se fizer outro disco, e julgo que farei, já se moverá noutra área", apesar de identificar a questão que o preocupa já: "Que posso eu operar, dentro de um universo estético reconhecível e definido, sem deixar de ser eu?".Por enquanto, ocupam-no outros projetos: "Tenho feito muitos concertos nos últimos anos com o Rumos Ensemble - eu, a Anne Victorino d'Almeida (violino) e o Luís Gomes (clarinete) -, nomeadamente o Tocando Portugal [de 2015], com o qual ainda só não fomos à Oceânia! E agora estamos a ultimar o Tocando Zeca, que concebemos pelo 90.º aniversário do seu nascimento e no qual teremos a colaboração do Carlos Alberto Moniz, como apresentador e contador." Musicalmente, "trata-se de 12 arranjos de canções do Zeca, quatro deles meus e oito da Anne". A estreia será "lá para o final do ano ou início de 2020", numa sala "ainda a selecionar, pois gostaríamos que fosse um espaço com algo de simbólico ligado ao Zeca"..Entretanto, irá tocando o 2016 por esse mundo fora: "Já tenho vários concertos marcados, mas todos no estrangeiro, por sinal. Confesso que tenho investido pouco no mercado português..." Perguntamos se algum deles será no país de Sakamoto: "Por acaso, não (sorrisos)! Já tentei, mas ainda nunca consegui lá ir." E acrescenta, entre risos: "Na verdade, este disco é uma fisgada para ver se consigo finalmente ir ao Japão!".E algures, quem sabe se de novo "em trânsito", conta iniciar novo percurso criativo: "Irei espreitando a minha vozinha interior", diz sorrindo - "Mas sem pressas nem pressões!".As "segundas vidas" de um músico.Referir apenas a faceta musical de João Vasco seria um olhar só parcelar sobre um artista plural, cuja atividade se desdobra desde há vários anos noutras artes: fotografia, design gráfico e cinema. O seu mergulho nestas "vias paralelas" explica-o de forma curiosa: "Acho que surgiram um bocado como compensação, ou sublimação, do impulso criativo que eu já então sentia, mas não tinha ainda coragem de concretizar." Outra característica comum é que "surgiram todas por impulsos recebidos através de pessoas do meu círculo de amigos: foram elas que me iniciaram, mas só mesmo iniciaram, pois depois fui tudo autodidata". E aí refere a sorte de "vivermos num tempo com acesso ilimitado a informação, em que para qualquer pergunta que faças existe online uma resposta". Daí que diga que "tivesse eu nascido apenas 20 anos antes, não podia ter as atividades que hoje desenvolvo!". Agrada-lhe a ideia de "levar várias vidas paralelas, o que te faz viver mais depressa e mais dividido, mas também é imensamente gratificante"..Centremo-nos na sua faceta de videasta, com duas curtas no currículo: A Carruagem e O Entalhador ou a Oficina Mais Bela do Mundo. A primeira, estreia neste mundo, foi "um completo salto no escuro a que me incitou a Anne Victorino d'Almeida [violinista, compositora, docente no Conservatório]". Resumidamente, é "uma curta muda, com banda sonora e argumento da Anne, que se passa dentro de uma carruagem do metro, especialmente reservada e disponibilizada para nós por um período de oito horas num único dia! São 15" muito intensos, com vários fios de história que acabam por convergir, aqui se incluindo o clássico twist final"..A segunda teve duas etapas: "Primeiro, uma muito antiga oficina de entalhador que existia na Rua Nova do Loureiro, junto ao Conservatório. Um espaço de uma beleza que tanto me fascinou que fiz lá uma sessão fotográfica." Sucedeu depois algo de muito comum na Lisboa recente: "Soube pelo luthier que trabalha ali ao lado que o senhor entalhador, na altura com uns 86 anos, iria ser despejado, pois não tinha meios para pagar a renda repentinamente atualizada." Impôs-se a resolução: "Percebi que havia ali matéria para um filme: o espaço em si, a história do senhor e do pai dele, que já ali trabalhara, e a contingência do fecho da oficina, em mais um caso de gentrificação da cidade." Dito e feito. "Sorte de principiante" ou não, ambas acabaram premiadas internacionalmente..A primeira longa-metragem.À terceira, foi de vez: anuncia "para o final deste ano" o lançamento da primeira longa-metragem, em "estrito formato de documentário". E tudo começou... com um piano: "Corria há muito uma lenda no Conservatório sobre certo piano assinado por gente famosa até que, alertado por um colega, fui descobri-lo numa sala onde se amontoavam pianos velhos." E a lenda era verídica: "É um piano Bechstein, de 1915, que tem gravadas na estrutura metálica as assinaturas de todos os grandes artistas que nele tocaram! Fui depois investigar a história dele, ao mesmo tempo que, com uma ajuda financeira da ANA -Aeroportos de Portugal, se procedeu ao seu restauro, processo que aliás filmei." Os vários estádios - abandono, restauro e renovada utilização -, bem como os frutos da sua investigação "geraram tanto material interessante que eu compreendi que teria desta feita de me lançar a uma longa-metragem"..Descobriu que o piano pertencera a Elisa de Sousa Pedroso, "que foi talvez a maior mecenas musical de Portugal entre as décadas de 30 e 50", por via do Círculo de Cultura Musical, por ela fundado. Após a morte da proprietária [em 1958], "o piano foi cedido ao Conservatório, indo mais tarde parar ao chamado cemitério dos pianos que existia no átrio do Salão Nobre"..Neste momento, o documentário "está na parte final do processo de montagem". Quanto ao piano, conta, "foi para o picadeiro real do velho Museu dos Coches e está a ser usado regularmente". Final feliz, portanto, como convém aos filmes!.Anatomia essencial de um disco.Ouvir as 11 faixas de 2016 é mergulhar num universo de temas e melodias originais, conquanto sejam também povoadas de referências, dentre as quais a de Sakamoto é certamente predominante: logo pela instrumentação, idêntica à do seu 1996, mas também genericamente pelos "ambientes e texturas criados"..Outras emergem, porém, provenientes do universo erudito em que o pianista se formou e dentro do qual ensina; ou então do seu percurso de vida. Três são homenagens personalizadas: JLF, BFA e Bernardo. Na primeira, diz, "relembro em jeito de revolta o José Luís Ferreira [compositor], cujo desaparecimento foi para mim um choque absoluto"; já BFA está para "as iniciais do meu pai, que morreu há cinco anos e foi quem me iniciou na música". A última, por fim, "é uma elegia para o Bernardo Sassetti. Descobri-o tarde, confesso. E fui-me aproximando dele, à medida que o seu estilo mais se ia depurando. Neste tema evoco o ambiente de O Sonho dos Outros"..Bem no centro (faixa 6) está 2016, a faixa sakamotiana por excelência: "Aí evoco-o de forma bem objetiva, através de uma célula que se repete e que cria um gesto musical que se encontra no 1996. Depois, nas texturas, nos diálogos de temas e contratemas ele também está bastante presente." Identifica no modo como trata ritmicamente essa peça algo de "desbunda", por outras palavras, "de xamânico e indutor de transe, depois reforçado pelo vídeo associado, que mostra um percurso acelerado sobre a Muralha da China, intercalado com excertos de um discurso do Mao [Tsé-tung] e pontuado a certo ponto por um brado do Pedro [o violinista]"..Engraçada é a génese de Septoscópio: "Estava sentado numa esplanada em Maputo, durante uma digressão, e de repente um miúdo começa a tocar ali perto de mim um instrumento tradicional, um lamelofone, e o ritmo que ele estava a fazer transplantei-o para esta peça, dando-lhe depois uma inflexão ligetiana.".Outra sigla-data, por fim, é "17.10.2016", que explica assim: "Ah, isso foi quando ouvi um fá e um mi!" Explica: "Estava em Mérida do Iucatã, numa digressão no âmbito do Festival Cervantino do México, e as notas fá/mi surgiram-me do nada, já com uma ideia da harmonia envolvente. Foi a 'hora zero' deste disco, foi aí que tudo começou!".Nessas e nas restantes há depois citações diretas - ou "alusões a gestos específicos" - de compositores que marcaram o seu percurso, ou simplesmente integram o seu "firmamento" pessoal: referiremos Chopin, Schubert, Ravel, Stravinsky, Ligeti, Schnittke ou Steve Reich. E, noutro plano, há "aromas" de tangos e milongas, de fados instrumentais e aquele "não sei quê" de muito português no carácter e contorno de certos temas. Um autor, definitivamente, mais em afirmação do que em formação.."2016" (projeto multimédia) autor: João Vasco Almeida (música e imagem) intérpretes: J. V. Almeida (piano), Pedro Lopes (violino), Fernando Costa (violoncelo) editora: AVA Musical Editions ano: 2019 preço: 15€