Estes estão mesmo a fazer um filme agora? Temos de agir com muita naturalidade." George Harrison não sabia que estava a ser gravado - havia microfones escondidos por toda a parte - quando comentou com Paul McCartney e Ringo Starr este ligeiro incómodo em relação ao aparato à sua volta. Mas sim, Michael Lindsay-Hogg estava mesmo a fazer um filme das sessões de gravação dos Beatles, em janeiro de 1969, e os quatro de Liverpool não só agiram com muita naturalidade para as câmaras como, nas conversas mais francas, supostamente off the record, revelaram algo da sua postura "normal" por trás da aparência mediática. Uma revelação que chega finalmente aos fãs, porque, de facto, nada escapou à montagem e ao restauro de Peter Jackson, o realizador e fã neozelandês que esculpiu The Beatles: Get Back a partir de quase 60 horas de rolos de filmagens e 150 de gravação áudio. Um registo que cobre 21 dias do processo criativo da banda, com a gestação das 14 novas canções que tinham de ser dadas à luz no dia do seu primeiro concerto ao vivo em mais de dois anos..YouTubeyoutubehttps://www.youtube.com/watch?v=3S4PYfwuMQs."A coisa mais notável sobre este filme que fiz não é a minha assinatura, é na verdade o facto de Michael Lindsay-Hogg ter feito estas filmagens há 52 anos." As palavras de Jackson, na conferência virtual em que o DN participou, são sobretudo de gratidão. "Como fã dos Beatles, mesmo agora quando olho para Get Back - e tive de olhar muito nos últimos quatro anos -, ainda estou maravilhado com o facto de isto realmente existir", acrescenta. Disponíveis, no Disney+, o primeiro e o segundo episódios da série documental de três partes que dá a conhecer uma visão inédita sobre a interação de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, é também um presente para o realizador, que durante os tais quatro anos (tempo ampliado pelo contexto de pandemia) trabalhou sobre material valiosíssimo. A sua designação para a nobre tarefa teve que ver em particular com o documentário sobre a Primeira Guerra Mundial que realizou em 2018 - Eles Não Envelhecerão -, uma admirável operação de restauro a partir de arquivos inéditos. E não é, de todo, menos surpreendente a qualidade do que se vê em The Beatles: Get Back..Jackson aceitou o desafio a medo. Afinal, o álbum em causa, Let It Be, e o documentário homónimo de Lindsay-Hogg, estão inevitavelmente associados à amarga separação da banda, capítulo que sempre suscitou muitas dúvidas à volta das "Get Back Sessions". Mas depois do primeiro contacto com as imagens, as nuvens desapareceram: "Acabei isto a respeitá-los mais." Porquê? Porque, para o realizador, fica o sentimento de estar perante gente de carne e osso, seres humanos que tanto funcionavam em coletivo como tinham (e têm) as suas singularidades. "Eles são, na verdade, uns tipos decentes e sensíveis. Não há ali ego, não há prima-donas. Têm as suas divergências, ambições distintas. Obviamente, são pessoas diferentes entre si.".O que o documentário de Peter Jackson permite apreciar, na sua grande extensão (um total de quase oito horas), é a narrativa leve e intensa da dinâmica do grupo num momento crucial. "Que melhor maneira de descobrir algo sobre o caráter das pessoas do que ver como lidam com os problemas?" A conversa vai dar à "cena" em que George Harrison deixou a banda, temporariamente, durante as gravações. Mas situações como esta fazem parte do fascínio de Get Back: elas alimentam a perspetiva humana. De resto, o que vinga é o lado luminoso, a galhofa entre os rapazes de Liverpool e a música no ar. Porque nem só de temas para o álbum Let It Be se fizeram estas sessões: "Vê-se os Beatles a tocar Give Me Some Truth [de John Lennon], num tipo de ensaio muito rudimentar, All Things Must Pass, que obviamente foi o grande lançamento a solo de George [Harrison], ou Another Day, que foi o primeiro single de Paul McCartney quando fez carreira a solo", sublinha Jackson..Seja como for, há qualquer coisa de jogo secreto que atravessa o documentário. Veja-se aquela preocupação que Harrison tinha de estar a ser observado. "Michael [Lindsay-Hogg] está ciente de que quando aponta as [várias] câmaras aos Beatles, eles sabem que estão a ser filmados. Mas ele está determinado a tentar filmá-los, e a gravar o som, o máximo que puder sem que se apercebam", nota Jackson. Pode dizer-se então que "há uma batalha em curso entre Michael e os Beatles, com o primeiro a aplicar algumas técnicas para mostrá-los no filme de uma maneira muito mais sincera.".Que técnicas são essas? A dos microfones escondidos, por exemplo. E mesmo com instrumentos musicais por cima, não há obstáculo que nos impeça de aceder às conversas privadas que são a alma dos ensaios. Acontece que a equipa do realizador de O Senhor dos Anéis usou uma tecnologia capaz de retirar o som das guitarras para se ouvir as trocas de impressões sussurradas... Não se pode pedir mais intimidade..Tudo vai dar ao mítico penúltimo dia de gravação, 30 de janeiro de 1969, com John, Paul, George e Ringo (mais Billy Preston, nas teclas) a subirem ao telhado dos estúdios Apple, em Savile Row, para um concerto espontâneo, captado pelas nove câmaras de Lindsay-Hogg, que deram pontos de vista não só do telhado, mas também das reações na rua, incluindo a polícia a lidar com reclamações por causa do "barulho"....Este ato de improvisação vem na linha do que Jackson refere sobre o espírito daqueles dias: "Parece-me muito estranho a pouca organização que havia por trás dos Beatles aqui. E, pensando bem, parte da história de Get Back é que eles têm como objetivo fazer um programa de TV ao vivo... Não era a coisa do telhado, era algo completamente diferente!" E acrescenta que Get Back não retrata exatamente uma gravação. "Até que cheguem à performance, não estão a gravar, apenas a ensaiar. Eles entram nisto sem a equipa de suporte habitual. Até hoje, olhando para as filmagens, não sei quem é que estava a organizar alguma coisa." Dê-se as voltas que se der, isto são os Beatles a serem Beatles, como nunca os vimos..dnot@dn.pt