Peregrinação com direito à festa

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1 Na oração com que, logo à tarde, o Papa Francisco dará início à sua peregrinação a Fátima há uma frase central. Recordando o exemplo de Francisco e Jacinta "e de todos os que se entregam à mensagem do Evangelho", o Papa rezará: "Percorreremos, assim, todas as rotas, seremos peregrinos de todos os caminhos, derrubaremos todos os muros e venceremos todas as fronteiras, saindo em direcção a todas as periferias, aí revelando a justiça e a paz de Deus."

Nesta curta frase estão várias das ideias fundamentais do pensamento de Francisco: a busca de Deus, o ir ao encontro de quem mais precisa, o anseio de uma humanidade mais pacífica e de relações mais justas entre as pessoas, o apelo a uma Igreja que não esteja centrada em si mesma.

Nesta curta frase estão também várias coincidências com os desejos das pessoas que, nestes dias, chegam a Fátima: desejos de luz para as suas vidas, de paz para o mundo e de esperança numa atitude de serviço e disponibilidade para com quem necessita - são expressões que Francisco usará também nesta tarde.

2 Como sintetizará o Papa: "Seremos, na alegria do Evangelho, a Igreja vestida de branco, da alvura branqueada no sangue do Cordeiro derramado ainda em todas as guerras que destroem o mundo em que vivemos."

Quando fala do "sangue do Cordeiro", o Papa está a referir-se ao modo como os cristãos dão significado à morte de Jesus: na cruz, Cristo assume todas as dores da humanidade; e só a doação e entrega totais a cada pessoa permitem ultrapassar o sofrimento e construir um mundo mais humano.

É significativo que o Papa não utilize a linguagem que acentua a dimensão do sacrifício que tantas vezes se associa a Fátima. Como também é revelador que, ao insistir na ideia de que vem aqui como um peregrino entre muitos, que vem como "um pecador entre pecadores", o Papa volte de novo a dizer que precisa "muito" do povo.

Francisco sabe bem que o toque que passa entre ele e o povo católico (e mesmo não católico) não é apenas físico; é de quem entendeu a força moral que une ambos; é um líder que fala do que se deve fazer, diz como se deve fazer e faz como se deve fazer - ao contrário do que hoje tantas vezes se vê noutras lideranças.

3 Ao longo deste século, Fátima foi muitas coisas diferentes. No início, o povo simples, que vivia no limiar da sobrevivência, fez dela várias realidades simultâneas e, desde logo, quase paradoxais: uma construção beata e devocional; uma fonte de esperança na possibilidade da paz, num país dilacerado pela participação na I Guerra Mundial (como seria, mais tarde, na Guerra Colonial); uma oposição à ideia da I República de não permitir espaço para a dimensão religiosa da vida das pessoas...

Depois, Fátima construiu-se, também, na crítica às terríveis perseguições aos cristãos, durante os anos de chumbo de Estaline na União Soviética; na linguagem profundamente anticomunista e no aproveitamento mútuo entre o Estado Novo e uma desvirtuada espiritualidade mariana centrada na resignação; e, finalmente, na recuperação da ideia da paz, sublinhada pela peregrinação do Papa Paulo VI ao santuário para vincar precisamente esse objectivo, em plena Guerra Colonial; e num discurso pedagógico e moderno, que tenta purificar a linguagem mais usual de muitos peregrinos.

4 São os anseios de paz (para si, para as suas relações sociais e para o mundo) e o desejo de uma vida digna e tranquila que move as pessoas até Fátima e leva tantos a pôr os pés ao caminho. Hoje, muitas dessas pessoas estarão em Fátima, à volta de um homem que lhes fala ao coração, para fazer festa. É que a festa é outro profundo desejo humano. Hoje, estes milhares que estão em Fátima têm direito à festa.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Escreve no religionline.blogspot.pt

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