Pensem novo, olhem longe, à Ricky Gervais
Há uma dúzia de anos, Manuela Ferreira Leite, então líder do PSD, foi convidada para um almoço debate. Falava-se, discutia-se, alguém lançou para conversa a necessidade de reformas radicais em determinada corporação - mas ela disse-se descrente. E para explicar o tamanho da sua dúvida, provocou. Para reformas dessas seria preciso, disse, "suspender a democracia por seis meses." Eu não estava lá mas garanto-vos, ela sorriu ao dizê-lo.
Foi num grande hotel lisboeta, num almoço da Câmara de Comércio Luso-Americana, e entre gente mais disposta a citar Thomas Jefferson do que o general Franco. Talvez alguns dos presentes estrangeiros não soubesse quem era Ferreira Leite, mas os jornalistas portugueses conheciam-na.
Foi desse grupo que se montou uma estrangeirinha, como se estivesse ali uma daquelas europeias que nos anos 30 demandaram Munique para admirarem o Adolfo. Felizmente as datas não batiam certo e, ao fim de uma semana, Manuela Ferreira Leite voltou à democracia, de onde não saíra.
E agora jornais armam-se em espantados por o primeiro-ministro fintar as perguntas sobre a provável austeridade que aí vem. Querem que António Costa soletre a palavra "austeridade". Já a disse? Boa, lá vai título: "Costa: vem aí austeridade!" E fazem-se concursos nas redações: "Fui eu que lhe arranquei o tabu!"...
Os dois momentos, separados por 12 anos, ilustram uma das misérias do jornalismo português. Em 2008, teria sido uma boa discussão trazida por Ferreira Leite, aquela sobre as corporações que se fecham na sua concha. E, hoje, 2020, precisando nós todos que o primeiro-ministro se debruce sobre o desembocar das duas tremendas crises, a sanitária e a económica, querem uns inúteis desviá-lo para conversas fúteis. O pior da tolice é ela impedir discussões necessárias.
Fazer da "suspensão da democracia" uma polémica nacional foi estupidez de alguém que tresleu o que foi dito. E a pesca à "austeridade" na boca de Costa é um exercício de ignorantes que não sabem que em tempo de grandes crises o dizer dos governantes pode trazer imprevisíveis desgovernos numa situação já de si caótica.
A austeridade/pandemia não é mote para chicana, é uma condição que nos vai, ou não, mas provavelmente vai, mudar o nosso quotidiano, os costumes e as esperanças. Olhem, viajar de avião em voos baratos, cotovelo com cotovelo de dois companheiros desconhecidos, de cada lado, não vos assusta? E querem continuar com polémicas sobre se o PM já disse "austeridade" ou não?
Querem continuar a soberba de exigir explicações por se ter ignorado as máscaras e, depois, agarrado a elas? Todos os países europeus, todos, terem feito o mesmo devia-nos dar a humildade de reconhecer que os países europeus não estavam preparados. Por isso adaptaram a política com máscaras à sua capacidade de as arranjar. E isso são máscaras, um pedaço de pano e um atilho. Como será mais difícil encontrar soluções para cenários de catástrofe com, durante meses, os trabalhadores confinados em casa, os aviões guardados nos hangares e os portos fechados.
Há quatro anos, por esta altura, dois grandes profissionais estavam em estado de choque. Antes disso, em 2008, ao seguir como repórter o duelo Obama/McCain, eu descobrira Nate Silver, um analista de estatísticas eleitorais,. No dia anterior da eleição enviei as suas previsões e fiz um brilharete. Na campanha seguinte, 2012, fiz o mesmo e voltei acertar.
Mas em maio de 2016, ainda antes do duelo entre os dois candidatos, a democrata Hillary Clinton e republicano Donald Trump, já Nate Silver tinha de admitir o fiasco: "Espalhei-me na campanha republicana". A surpresa Trump iria à eleição final e isso fora sempre varrido como hipótese pelo meu herói. Também Dana Milbank, especialista eleitoral no Washington Post, tinha escrito meses antes que se Trump fosse nomeado comeria a "página onde minha coluna é impressa."
O meu Nate Silver explicou-se com classe. Citou o filósofo Bertrand Russel e o seu método de investigação científica, o indutivismo. Contou a fábula do peru indutivista. O peru foi para uma quinta onde todos os dias lhe davam de comer, às 9 da manhã. Seguidor da observação empírica e continuada, o peru deu-se conta de que cada dia e pelas 9 era alimentado. Concluiu: "Dão-me de comer todos os dias, pelas 9 da manhã."
E o peru já pensava que isso era uma lei. Mas na véspera do Natal, não lhe deram de comer e cortaram-lhe o pescoço. O problema dos especialistas de eleições, tal como o dos perus, é pensarem e concluírem pela normalidade. Quando lhes calha um candidato como Trump, que lhes desaparafusa a realidade, os especialistas Nate Silver e Dana Milbank perdem-se.
Na semana passada, como sabem, o presidente Donald Trump bateu um dos seus recordes de bizarria e irresponsabilidade. Na Casa Branca, falando para a televisão sobre a pandemia do coranavírus, disse que injetar lixívia nos pulmões podia curar.
Ora acontece que o comediante Ricky Gervais (The Office e agora da After Life, na Neflix), em plena campanha eleitoral 6 de maio de 2016, tinha publicado no Twitter, isto: "O facto de haver avisos Não Beber nas garrafas de lixívia faz-me pensar que Donald Trump pode tornar-se presidente."
Quer dizer, dois meses antes dos especialistas Nate Silver e Dana Milbank se envergonharem por não terem visto a ascensão do desbocado (as fórmulas matemáticas não detetam malucos) e quatro anos antes de Trump se lembrar das virtudes curativas da lixívia nos pulmões, já um humorista previra tudo.
Este espantoso milagre de Ricky Gervais confirma que pensar fora da caixa é urgente no mundo moderno.