Foi na histórica Pastelaria Benard, no Chiado, que nos encontrámos. Não por acaso: Benard remete para João Bénard da Costa (1935-2009) o assunto da conversa. Pedro Mexia apresentara há poucos dias o terceiro volume, do Tomo I, dos Escritos sobre Cinema que estão a ser publicados pela Cinemateca. Um ambicioso trabalho de edição dos textos desse seu antigo diretor, Bénard da Costa, cuja memória de uma certa vivência da sala escura urge transmitir às próximas gerações. Mexia, que assumiu o cargo de diretor interino da Cinemateca na altura da morte dele, fala de um homem que tinha a capacidade de fazer os outros gostarem das coisas de que ele gostava. Um cinéfilo de espécie rara que se pode descobrir, neste volume dos seus escritos apaixonados, desde o H de Hitchcock ao L de Lang.."Cinéfilo é uma palavra que caiu em desuso. Sugere um mundo outrora novo e admirável mas que entretanto se tornou museológico", escreve o próprio Mexia na introdução de um divertido livro chamado Dicionário de Cinema para Snobs. Começámos por aqui..Desmistifique-se o conceito de cinefilia. A cinefilia começa como uma espécie de tentativa de dar cartas de nobreza a produtos antes considerados de entretenimento. A própria cinefilia dos Cahiers [du Cinéma] começa com o ato de fazer entrevistas e escrever livros levando muito a sério filmes que não eram levados a sério. Por exemplo, dizer que [Howard] Hawks ou Hitchcock eram grandes autores, no mesmo plano dos grandes escritores ou compositores, era bastante ousado. Nesse sentido, a cinefilia nunca foi museológica. Veja-se: a nossa Cinemateca chama-se Museu do Cinema e tem esse lado museológico natural de preservação e divulgação, mas ainda recentemente apresentou um ciclo de um realizador [sul-coreano] contemporâneo, Hong Sang-soo, que não é de todo museológico... Penso que há uma tendência para caricaturar esse lado nostálgico e passadista..E João Bénard da Costa, como é que se pode definir este cinéfilo? Agora ao reler muitos dos textos deste volume dos Escritos, há quatro ou cinco características que aparecem recorrentemente. Uma delas - que é, por um lado, uma das mais fascinantes, e por outro, potencialmente a mais problemática - a marca geracional, que é muitíssimo forte. Há um "nós" que subjaz a muitos textos, que contempla o momento em que os filmes foram feitos, em que foram exibidos cá, em que sala, em que circunstância política, que escritores se referiram a eles... tudo isso salta à vista, sobretudo nas crónicas de jornal. Depois, era um crítico tendencialmente superlativo: há vários filmes que são o melhor filme do mundo e vários filmes de um autor que são o melhor filme desse autor; e ainda - algo que hoje em dia não é tão evidente nos "cinéfilos" - uma atenção permanente às várias artes, ou seja, tomando o cinema não como uma arte desligada das outras. Finalmente, e penso que este talvez seja o aspeto mais interessante de todos, o estilo. Que não é só o estilo do ponto de vista da prosa, muito cativante, mas também uma capacidade de descodificar [os filmes] através de determinadas obsessões. Nos textos de Bénard vamos encontrar certas ideias de duplos, de fantasmas, pecados e redenções... São imaginários diversas vezes convocados..Por falar em fantasmas, um dos filmes prediletos de Bénard da Costa era O Fantasma Apaixonado [1947]. Este título parece ser uma boa definição do próprio, enquanto escritor arrebatado. Acha que ainda se "pratica", hoje em dia, este tipo de registo tão subjetivo? Acho que hoje em dia prevalece um certo clima cool, digamos, em que há uma distância dos objetos, um pouco por todo o lado, que é também de alguma maneira geracional, ou epocal, e no caso do cinema, muito em particular, com a tendência do monopólio académico sobre os escritos de cinema. A escrita académica pode ser tão notável como qualquer outra mas tem uma série de protocolos que não são de todo passionais. No fundo, nem podem ser. É outra coisa. Por isso é que se regressa a estas vozes... Não é por acaso que nos Estados Unidos ainda agora as pessoas recordam a [crítica de cinema] Pauline Kael, porque é nesse lado passional que se reconhecem. Alguns dos autores de que mais gosto tendem a ser entusiastas, excessivos, a dizer coisas às vezes abracadabrantes... Mas há uma paixão que deixou de estar nos nossos hábitos..Essa paixão faz parte também de um hábito de escrita pré-internet, baseada na experiência pura da memória, cultura e capacidade de interpretação. Como é que isso se sente na leitura? Na minha experiência de releitura das folhas de sala dele, uma das coisas que eu reparava era de que no corpo do texto havia sinopses ou descrições de uma cena que não eram cem por cento objetivas - o que quer que isso queira dizer... - como não é objetiva qualquer descrição que eu possa fazer desta sala. E isso é muito engraçado porque, num certo sentido, ele era também alguém que quase literalmente não via o mesmo filme que nós víamos. Geralmente via mais e via com uma lente particular que, ao longo dos anos, permitia a quem o ia acompanhando saber porque é que ele ia gostar de certo filme. No pouco tempo que convivi com Bénard da Costa, lembro-me de duas ou três vezes exprimir reservas em relação a alguns filmes e ele imediatamente me esmagou, de modo afável, com a evidência de que eu não os tinha visto bem..Queria ser acompanhado no seu gosto. De resto, Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei é mesmo o título do documentário de Manuel Mozos sobre ele..E é dessa qualidade de transmissão de um "bichinho" que vive também a sua escrita? Claro. Várias outras pessoas, inclusive cineastas, escreveram sobre cinema. Mas quem é a pessoa que escreveu sobre cinema em Portugal, quase por antonomásia? É o João Bénard da Costa! Claro que isso é injusto para as várias outras figuras importantes, mas ele sabia, por mérito próprio, que havia um capital de reconhecimento no trabalho dele que lhe permitia dizer às vezes, em tom provocatório, "aprendam que eu não duro para sempre". Portanto, o ascendente dele era de transmissão, não era fechado... Eu não me lembro bem, mas acho que vi o Johnny Guitar [1954, Nicholas Ray] depois de saber do entusiasmo dele pelo filme. E evidentemente o efeito é que a pessoa vai preparada para o tornar o filme da sua vida..Como é que estes textos falam, não só aos cinéfilos mas também aos espectadores de agora? No caso dos textos das folhas de sala, as pessoas continuam a ser muito interessadas, desde logo pelo aspeto da contextualização - com certeza que não será o site do IMDb a substituir isso. Porque uma das vantagens da memória, desse lado factual, é a componente crítica, mais do que arquivística ou museológica, no sentido de contrariar a tendência de se pensar que se está a descobrir a pólvora a cada momento. Por exemplo, agora o 1917 [de Sam Mendes], "ah, um filme em plano-sequência! Nunca ninguém fez isto..." Quer dizer, há a Arca Russa [2002, Aleksandr Sokurov], A Corda [1948, Hitchcock]....Estamos a falar de textos que são, acima de tudo, literatura? Para mim, é evidente. Há uma fronteira bastante usual e que não me interessa nada: a que separa história do cinema, crítica e literatura. Os textos do Bénard da Costa autonomizam-se dos filmes pelo seu próprio valor, não estão ao serviço dos objetos que analisam. O próprio gesto de escrever à mão acentuou esse cunho literário... Às vezes há alguma suspeita em relação à subjetividade, mas que foi isso que contribuiu para o impacto que estes textos tiveram em quem os foi lendo ao longo das décadas, disso não tenho dúvidas..Uma voz de autor que correspondia a uma voz física inconfundível, muito presente no espaço público. Sim, para além da chamada voz literária, essa voz física pode continuar a ser descoberta no referido filme de Mozos, nos DVD com as apresentações dele na RTP, ou mesmo na internet. Até a ideia de falar bem para o público é algo que está em perda civilizacional. Lembro-me sempre daquela história que vem nos livros de as pessoas irem ouvir os discursos de Almeida Garrett no Parlamento. Já não há ninguém que vá ao Parlamento ouvir um discurso pela sua qualidade, só se o tema lhe interessar. Indo mais longe, sem ser o [Barack] Obama, quais são os políticos das últimas décadas que eram grandes oradores? Não havia. No entanto, há os livros do Churchill ou do De Gaulle... Hoje em dia a capacidade de falar já não é tão cultivada.