Em janeiro, o Papa Francisco reiterou numa carta aos bispos a sua política de "tolerância zero" para com os clérigos responsáveis por abusos sexuais de menores. Mas quando o número três do Vaticano, o cardeal George Pell, foi acusado formalmente pela justiça australiana dessas práticas, pelas quais já vinha a ser investigado há anos, o líder da Igreja Católica autorizou-lhe uma licença do cargo de prefeito da Secretaria de Economia para poder defender a sua inocência na justiça. Mas este não é o único caso que arrisca abalar a credibilidade do Papa.."Tem havido um incansável assassínio de carácter. Estou ansioso por poder ter o meu dia em tribunal. Estou inocente, estas acusações são falsas", disse ontem Pell numa conferência de imprensa. O cardeal de 76 anos alegou ainda que "a ideia de abuso sexual lhe é repugnante". Pell, que no passado recusou viajar para a Austrália para falar com os investigadores e testemunhou através de videoconferência alegando problemas de saúde, terá de estar presente em tribunal em Melbourne a 18 de julho..Num comunicado, o Vaticano elogiou o trabalho de Pell, dizendo que o Papa "apreciou" a sua "honestidade durante estes três anos de trabalho na Cúria Romana" e "está grato pela sua colaboração e, em particular, pela sua energética dedicação às reformas no setor económico e administrativo". E saiu em defesa do cardeal, apesar de dizer respeitar o sistema de justiça australiano, lembrando que ele "condenou abertamente e repetidamente os atos imorais e intoleráveis" de abusos contra menores, cooperou no passado com as autoridades e trabalhou na Austrália para garantir apoio às vítimas..A polícia do estado de Vitória, onde Pell foi padre nos anos 1970, diz que o cardeal é acusado de "vários crimes sexuais" ocorridos no passado e que há múltiplas vítimas. Duas delas, dois homens, disseram através da advogada estar "extáticos" com a acusação, apesar de ainda não conhecerem os seus pormenores. Mas a representante alerta para o facto de uma condenação ser muito difícil, já que os números mostram uma diminuição no número de condenações apesar de mais denúncias nos últimos anos..A comissão de inquérito que investigou durante quatro anos os abusos na Austrália descobriu que 4444 atos de alegada pedofilia tinham sido denunciados à Igreja, sendo que em algumas dioceses mais de 15% dos padres eram suspeitos de serem pedófilos. Ouvido várias vezes pela comissão de inquérito, Pell pediu desculpas pela Igreja e reconheceu não ter agido corretamente em relação aos padres suspeitos nos anos 1970. Quanto à comissão criada por Francisco para estudar os casos de abuso em todo o mundo, esta tem estado praticamente parada com uma vítima, Marie Collins, a demitir-se em fevereiro, acusando a Cúria de travar a implementação das recomendações apesar da aprovação do Papa..A acusação contra o cardeal australiano surge um dia depois de Francisco ter elevado mais cinco cardeais: do Laos, Mali, El Salvador, Suécia e Espanha. Os quatro primeiros países que nunca tiveram representantes no Colégio Cardinalício, a elite da Igreja Católica que tem o poder para eleger o próximo Papa. Como prometido, Francisco leva a Igreja de 1,2 mil milhões de fiéis para a periferia, de forma a refletir um mundo mais diverso do século XXI. Na cerimónia, Francisco incitou os novos cardeais a serem "humildes, ajudar os pobres e lutarem contra a injustiça". O problema é que um deles, o arcebispo de Bamako, Jean Zerbo, está entre os responsáveis da Conferência Episcopal do Mali alegadamente envolvidos com sete contas no banco suíço HSBC que, em 2007, teriam o equivalente a 12 milhões de euros. A informação foi revelada pelo Le Monde em maio, citando os dados da chamada SwissLeaks. O jornal francês falava em suspeita de "apropriação indevida de fundos", o que foi logo negado pela Conferência Episcopal..Na segunda-feira, a igreja do Mali anunciou que Zerbo não estaria presente na cerimónia de elevação a cardeal na quarta-feira por problemas de saúde. O que gerou especulação de que Francisco teria recuado na decisão de o nomear por temer um escândalo, mas o cardeal acabaria por viajar para o Vaticano..PERFIS.GEORGE PELL.› O cardeal George Pell nasceu a 8 de junho de 1941 em Ballarat, no estado australiano de Vitória..› Ordenado padre em 1966, tornou-se arcebispo de Melbourne em 1996 e de Sydney em 2001..› É cardeal desde 2003..› Desde 2014 que é prefeito da Secretaria para a Economia..› Em 2002, o então arcebispo de Sydney chegou a afastar-se do cargo para responder num inquérito interno por alegados abusos nos anos 1960, com a igreja a concluir que não havia provas suficientes. Em 2016, testemunhou por videoconferência na investigação sobre abusos do governo australiano e a polícia viajou para Roma para o interrogar. É defensor dos valores católicos tradicionais, com uma visão conservadora do casamento homossexual e do uso de contracetivos..JEAN ZERBO › O novo cardeal Jean Zerbo, o primeiro do Mali, nasceu a 27 de dezembro de 1943, em Ségou..› Ordenado padre em 1971, tornou-se em 1994 bispo de Mopti e quatro anos mais tarde foi nomeado arcebispo de Bamako..› Depois do golpe de 2012, quando vários grupos rebeldes assumiram o controlo do país, participou nas negociações de paz..› Zerbo tem defendido o diálogo entre a minoria cristã e a maioria muçulmana no Mali, envolvendo-se na luta contra a exclusão e a reconciliação. Em maio, após ser nomeado cardeal, o Le Monde revelou que a SwissLeaks mostra a existência de 12 milhões de euros em contas bancárias na Suíça pertencentes à Conferência Episcopal do Mali. Zerbo era o responsável pelas finanças.