É um disco de afetos, este Onde, que marca o regresso a solo de Paulo Praça, habitual colaborador dos The Gift ou de Pedro Abrunhosa e membro de projetos musicais como Turbo Junkie, Plaza ou Amália Hoje. Artista da pop e do rock, o músico e cantor arrisca-se agora por territórios aparentemente mais tradicionais, num álbum que é acima de tudo uma declaração de amor à terra onde nasceu e ainda vive, Vila do Conde..Filho assumido dos Velvet Underground e dos Beatles, também eles presentes no desfiar de memórias que é este livro-disco, em que a música surge acompanhada de um ensaio fotográfico da autoria de Cesário Alves. É no entanto a outro pai, chamemos-lhe assim, que Paulo Praça se vai inspirar, afirmando-se como um herdeiro direto de Fausto Bordalo Dias, no modo como junta modernidade e tradição num disco conceptual, com princípio, meio e fim, mas no qual cada canção consegue sobreviver por si própria..Não é por acaso, aliás, como confessa nesta entrevista, que elege Por Esse Rio acima um dos álbuns da sua vida. Tal como não será também fortuita a participação do próprio Fausto no disco, a interpretar um poema de José Régio, talvez o mais ilustre filho de Vila do Conde. As letras incluem ainda autores tão diversos como Ruy Belo, Valter Hugo Mãe, Jorge Cruz, Renato Maia, Simão Praça, Artur da Sousa Araújo, José Coutinhas ou o próprio Paulo Praça, que assina o tema Amor Num Acordeão, "uma ode aos Beatles", cantado a meias com José Cid, no qual recorda um dia da infância, igual a tantos outros, mas sem os quais este disco nunca seria possível..Como é que surge a ideia de dedicar um disco a Vila do conde, a terra onde cresceu e onde ainda vive? Lembro-me perfeitamente de onde e quando começou, a 12 de março de 2017, num quarto de hotel em Nova Iorque, no preciso dia em que um dos álbuns da minha vida fazia 50 anos, o disco The Velvet Underground and Nico, com a famosa capa da banana, do Andy Warhol. Estava lá com os The Gift e houve uma tempestade de neve terrível, que nos impediu de apanhar o avião para o Texas, onde íamos atuar no festival South by Southest. Tenho sempre uma guitarra comigo e comecei a tocar o Ill' Be Your Mirror, dos Velvet, e depois, quase sem dar por isso, comecei a tocar um excerto do que viria a corresponder ao refrão do tema Romance Vila do Conde: "Vila do Conde espraiada entre pinhais, rio e mar.".Excerto que acaba por funcionar quase como um mantra ao longo do disco, no modo como faz as ligações entre os diferentes temas... Exato, é isso mesmo, tornou-se o mantra unificador do disco..É algo que, para quem não saiba da história, até soa a música tradicional portuguesa e não a Velvet Underground. É possível, sim. Nunca tinha pensado nisso, mas é uma perspetiva interessante. Sempre fui um pouco repentista a fazer música, um indisciplinado disciplinado, para quem a maior parte das ideias raramente surgem em estúdio, e este foi um desses casos. Gravei a melodia no telefone e só lhe voltei a pegar quando regressei a Vila do Conde e produzi essa canção, já quase como ela ficou no disco. E foi a partir daí que senti essa necessidade de ir à minha essência, enquanto pessoa e artista, para dar continuidade a este trabalho. É engraçada essa referência às raízes mais populares, porque o meu primeiro grupo era precisamente de música tradicional, e depois há o Fausto, Por Esse Rio acima é outra dos discos de referência da minha vida. Tínhamos uma sala muito pequenina, em casa dos meus pais, onde aos fins de semana, religiosamente, toda a família se juntava para ouvir música. Cada um escolhia um disco, e ali ficávamos, a ouvir. São todas essas memórias que este álbum pretende resumir..E cada música funciona como uma memória diferente, certo? Exato, tenho a Amália, que a minha mãe adorava, na faixa Vila do Conde, que é quase um fado; No Portugal Sacro-Profano tenho o Paul Simon e o Art Garfunkel, que foi o primeiro concerto que vi na vida, na televisão, e provavelmente aquele que me fez ser músico; tenho os cantores românticos franceses e italianos, que herdei do meu pai, no tema A Minha Terra; os Beatles no Amor Num Acordeão e o Fausto no Romance de Vila do Conde..Que aparece duplamente nessa música, enquanto referência e também em carne e osso, pois é um dos artistas convidados do disco. Como é que conseguiu convencê-lo a participar? Nem eu sei bem, porque o Fausto é um bocado ermita. Apenas segui essa minha vontade, e acabou por correr bem. Quando terminei essa canção senti mesmo que o Fausto estava ali, porque ele é um músico que teve a capacidade de resumir num disco o melhor da nossa cultura e tradição popular. Ouvi pela primeira vez o Por Esse Rio acima numa dessas sessões familiares lá em casa, através de um irmão meu, e foi um disco que nunca mais saiu da minha vida, acabando por me marcar de várias formas. Por um lado tirou-me qualquer preconceito em relação à música tradicional, que eu havia renegado completamente durante a adolescência. E por isso tornou-se um sonho, tentar ter o Fausto a cantar esta música. Comecei por tentar arranjar o contacto do agente dele e consegui, mas disse-me logo que seria muito difícil, porque "o Fausto só alinha no que gosta". Disse-me que ia falar com ele para saber se me podia dar o e-mail. Passados alguns dias ligou-me, para dar o tal e-mail, e foi assim que enviei a canção e o poema, que é do José Régio, o que acabou por ser uma mais-valia para mim, pois o Fausto adora o Régio. Enviei também uma biografia minha, mais pessoal do que profissional. Expliquei-lhe que era neto de um moleiro, por parte da minha mãe, que é minhota, contei-lhe a forma como ele chegou a mim, através dos meus irmãos mais velhos, essas coisas. E um dia, passados quase dois meses, quando já não estava à espera, o Fausto respondeu-me..Qual foi a sua reação? Eu poucas vezes choro de alegria, mas depois de ler aquele e-mail foi uma dessas raras ocasiões. Foi um momento muito emocionante, não só porque aceitou o convite, mas especialmente porque percebi que ele tinha gostado muito da canção. Encontrámo-nos uma primeira vez em Moledo, no Minho, onde ele passa férias, fomos almoçar. E depois acabámos por fazer as gravações em casa dele, em Lisboa, no Lumiar. Montámos um estúdio no escritório e foi um momento perfeito..Este trabalho acaba, no entanto, por se transformar numa celebração de Vila do Conde, que inclui ainda outros filhos da terra, como o escritor Valter Hugo Mãe ou o fotógrafo Cesário Alves, autor do ensaio fotográfico que acompanha este livro-disco. Como é que isso aconteceu? É verdade, o próprio Valter o diz no prefácio, quando fala de "Vila do Conde em festa". Depois de ter concluído o tema Romance de Vila do Conde comecei a pensar em possíveis poemas, que poderia incluir no disco. Vila do Conde tem essa característica, de ter tido como habitantes muitos escritores. Por lá passaram Antero de Quental, Eça de Queiroz, Camilo de Castelo Branco ou Guerra Junqueiro. Mas optei pelo José Régio por ser um verdadeiro filho da terra, que ali nasceu e viveu e depois foi para longe, mas nunca a esqueceu e descreve-a como nenhum outro, naquele momento que abre o disco: "Abria de manhãzinha as vidraças de par em par, entrava o mar no meu quarto só pelo cheiro do ar." É mesmo, em Vila do Conde o cheio do mar entra pelas casas adentro..Escolheu também um poema de Ruy Belo, que não é vila-condense. Não, mas apaixonou-se por uma vila-condense e lá se casou. É alguém que escreve sobre a terra com a perspetiva de quem vem de fora. E tenho também um texto do José Coutinhas, que saiu muito novo de Vila do conde e nos dá um outro olhar, mais saudosista. O Valter Hugo Mãefoi um parceiro desde a primeira hora. Tentei trazer todas essas visões para o disco e quando comecei a perceber que a poesia ia ter um papel tão importante, decido que não podia fazer um mero disco, mas sim um livro-disco..Foi também por isso que decidiu convidar o fotógrafo Cesário Alves para participar no projeto? Sim, porque se trata de um trabalho que tem muito a ver com as memórias coletivas de um local, e ter esse lado também de imagem completava. O Cesário tem o melhor de dois mundos, por um lado conhece como ninguém o arquivo fotográfico de Vila do Conde, mas ao mesmo tempo é alguém com um olhar muito experimental e fazia todo o sentido trazê-lo também, para levar este livro de poesia um pouco mais longe. É Vila do Conde porque fui eu o autor, mas podia ser outro lugar qualquer, porque é algo que tem a ver com a identidade de um sítio. Quanto mais viajo e quanto mais regresso, mais apaixonado estou por esta terra. Sinto-me muito feliz em Vila do Conde, não só por lá estarem todas as minhas memórias mas também, e especialmente, por continuar a descobrir coisas novas todos os dias.