Há qualquer coisa de fascinante em ver Paul McCartney, 79 anos, a abanar a cabeça e os ombros ao som de uma canção dos Beatles. Como se estivesse de fora do processo criativo, como se fosse um fã a sentir a frescura de cada nota. É o próprio que confirma essa transição para o outro lado, em McCartney 3,2,1: "Passei a ser um fã dos Beatles. Naquela altura, era apenas um Beatle. Mas agora que o volume de trabalho da banda está concluído, volto a ouvir os discos e espanto-me, do género: "que linha de baixo é esta?"" Os pequenos espantos, dele e do produtor barbudo Rick Rubin (descalço, assumindo a ausência de cerimónias), fazem esta série documental parecer uma ocasião de descoberta. E se é verdade que McCartney não vem propriamente debitar histórias inéditas, desde a formação dos Beatles até ao último álbum da banda, há uma inequívoca vitalidade que nasce do "jogo" escolhido para sustentar o encontro: pega-se numa canção aqui, outra ali, e decompõe-se os seus elementos sonoros, a(s) narrativa(s) por trás das notas e as influências escondidas nas costuras melódicas..Ao longo de seis episódios, com cerca de meia hora cada, filmados a preto e branco por Zachary Heinzerling, dois vultos do meio musical conversam dentro de um estúdio espaçoso, seja com um piano ou uma guitarra por perto seja em frente a uma mesa de mistura. Os primeiros são instrumentos que permitem a McCartney ilustrar memórias através da sua sonoridade, como quando fala das músicas que o pai tocava ao piano, sublinhando o facto de ter crescido no seio de uma família feliz, ao contrário de John Lennon (a quem regressa diversas vezes). Já a mesa de mistura é a praia de Rubin, que, com os ouvidos treinados, a usa para isolar faixas, detalhes musicais de cada canção, e assim transportar McCartney por velhas estradas ou trazer ao de cima o tal espanto de quem ainda conserva uma relação mágica, um vínculo juvenil, com as singularidades criativas. A ideia é, no fundo, captar as reações e comentários mais ou menos espontâneos do ex-Beatle perante aquilo que ajudou a conceber (as referências aos Wings ou à carreira a solo são muito breves)..O facto de não haver uma cronologia a estruturar este documentário, apetece dizer, "acústico", e de Rubin não enveredar pela linha da entrevista formal - por vezes até exagera um pouco no uso das exclamações "Uau!" e "Incrível!", como bom americano -, permite saborear cada episódio numa espécie de introspeção suave. Quer dizer, McCartney presta-se a uma viagem no tempo, e nos seus afetos, através do simples prazer da escuta de canções. Para além de Lennon, ele tem palavras de admiração por todos os seus companheiros de banda, incluindo o famoso produtor George Martin, designado "o quinto Beatle". Destaca a arte da guitarra de George Harrison, por exemplo, em Nowhere Man e Taxman, recorda o dia em que se sentiu arrebatado pelo ritmo de Ringo Starr, este sentado na bateria a tocar What"d I Say, de Ray Charles. Um momento muito especial, que diz ter erguido a banda..Essa é uma das curiosidades conhecidas dos fãs de The Beatles. Assim como se sabe que Here, There and Everywhere é o tema de que McCartney mais se orgulha, enquanto compositor - lá está, não é uma novidade, mas assistir aqui à sua postura de maravilhamento ao ouvi-lo é a quintessência da série. Como se o miúdo que aprendeu música sem saber ler uma partitura ("Está tudo na cabeça, não no papel"), partilhando a autoria de canções intemporais, se sentisse um Mozart. Assim, sem falsas modéstias. Chega mesmo a citar o compositor clássico quando resume que a alma disto tudo esteve sempre na satisfação de "escrever notas que gostem umas das outras". Embora, em matéria de música clássica, o preferido dos Beatles fosse Bach (repare-se na trompete em Penny Lane...)..É no início de McCartney 3,2,1 que se coloca a questão fundamental, e geralmente entendida como retórica: qual o segredo na origem das composições memoráveis dos Beatles? Paul corta o romantismo pela raiz ao explicar que, na ausência de dispositivos de gravação, e sem saberem ler música, a única hipótese de uma canção sobreviver até ao dia seguinte era tão-somente ser fácil de memorizar... "Éramos de Liverpool - às vezes diz-se que Liverpool é a capital da Irlanda - onde existe uma grande influência irlandesa e celta. Os celtas nunca registavam nada por escrito. Era a tradição dos bardos. E usávamo-la como desculpa. Eu e o John costumávamos dizer: "É a tradição bárdica"!".Isso e uma tremenda liberdade, com influências que iam do afrobeat de Fela Kuti ao baixo de James Jamerson, passando por Roy Orbison e Chuck Berry.."Se McCartney 3,2,1 é uma produção despojada e intimista, usando poucas imagens de arquivo, está para chegar o documentário que parte de mais de 60 horas de material filmado por Michael Lindsay-Hogg, e 150 horas de áudio. Chama-se The Beatles: Get Back, tem assinatura de Peter Jackson, e, devido à extensão do material analisado, restaurado e montado pelo realizador ao longo de três anos, chegará ao streaming Disney+ (estima-se novembro) em três episódios, cada um com cerca de duas horas de duração..Estamos a falar de filmagens inéditas de janeiro de 1969, que seguem John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr na preparação da sua última performance ao vivo, mostrando a dinâmica da escrita e ensaio de 14 novos temas originalmente projetados para um live album, que acompanharia o célebre momento no terraço do n.º 3 da Savile Row de Londres. Segundo Jackson, o que se pode esperar de The Beatles: Get Back não tem necessariamente que ver com nostalgia: "Em muitos aspetos, a notável filmagem de Michael Lindsay-Hogg registou várias histórias. A história dos amigos e dos indivíduos. Esta é a história das fragilidades humanas e de uma parceria divina. É um relato detalhado do processo criativo, com a elaboração de canções icónicas sob pressão, no meio do clima social desse início de 1969. Mas não é nostálgico - é cru, honesto e humano. Em seis horas, o espetador conhecerá os Beatles com uma intimidade que nunca pensou ser possível." A promessa está feita..Enquanto se aguarda a estreia de Get Back, Paul McCartney prepara o terreno no Disney+ com uma revisitação em jeito de bombom para fãs. McCartney 3,2,1 é a prova de que ele ainda tem a música no coração e gosta de a transmitir num diálogo tranquilo e caloroso, entre teclas, cordas e botões de uma mesa de mistura..dnot@dn.pt