A canção de abertura do novo álbum de James Paul McCartney, desconsiderada para efeitos práticos a vinheta inicial, faz-nos tremer quanto ao que se segue. Em tempo lento, partindo do piano, I Don't Know é, convirá explicar, um bom tema - de resto, em todo este tempo de exposição pública, o homem não acumulará mais de uma dúzia de pontos fracos. O que parece um mau presságio é o tom da cantiga, em que alguém, possivelmente, com a idade do autor, transmite a ideia de ter chegado a uma encruzilhada, com corvos à janela e cães à porta, com desânimos acumulados e com uma hipótese de paragem resignada. Macca tem 76 anos e, por muito que isso custe aos que se lembram de ler a notícia da separação dos Beatles e a explicação simplista que a historia registou - "a culpa foi da Yoko" -, tudo isso aconteceu vai para meio século. John Lennon morreu em 1980, George Harrison em 2001. E, se bem que Ringo Starr vá alimentando uma presença que vale sobretudo pela herança mitológica (como aconteceu no ano passado com Give More Love), cabe a Paul e só a ele manter a chama viva. Caso ele entrasse em fase depressiva ou fechasse a torneira, muito teríamos para reequacionar, quanto à cultura pop tal como a conhecemos e alimentamos....Para descanso geral, esses primeiros quatro minutos e meio do disco acabam por nos remeter para a táctica daqueles animais que se fingem de mortos ou deixam transparecer uma ideia de impotência e de resignação... antes de voltarem ao ataque. Ao segundo andamento, Come on to Me, as nuvens negras desaparecem instantaneamente, quando o artista aparece a renovar os votos de fé no rock, bem sublinhados com um arranjo viral para o naipe de metais. Ao seu jeito, McCartney começa uma festa que o leva a revisitar e, ao mesmo tempo, a experimentar novos temperos - e não apenas o que diz respeito ao método de trabalho aprendido quando passou uma temporada nos estúdios de gravação com o inesperado Kanye West, o que lhe terá permitido perceber que não é obrigatório levar o trabalho (todo) feito de casa, deixando margem para soluções de última hora..Adivinha-se, por exemplo, que Paul se entusiasmou com a riqueza sonora do cravo, superiormente utilizado em duas ou três ocasiões, de maneira a que não apaga outros gostos, não monopoliza as atenções, mas está lá bem presente..Os desvarios do capitão.Egypt Station não seria um disco de McCartney se não se recorresse de uma velha tradição do músico de Liverpool - as suas silly love songs, em modelo revisto e adequado a um septuagenário avançado. Nem por isso perdem a singeleza que tão bem comunica com os estados de alma dos apaixonados, como sucede em Happy With You ou Hand in Hand, que ficam bem acima da média do género, provavelmente a reflectir o conforto e o desafio da vida do compositor com a sua terceira esposa, Nancy Shevell. O que importa, para quem ouve, é que se trata de canções pessoais, mas transmissíveis. O mesmo acontece com Who Cares, uma exortação contra os desalentos e uma proposta - clara - de amizade que possa valer como salva-vidas..Há, no entanto, mais e melhor. Musicalmente, Paul reincide na fuga à lei dos dois andamentos de um tema: acontece na sequência final, Hunt You Down/ Naked/C-Link, em que consegue, a partir de uma instrumentação que "põe a carne toda no assador", surpreender os seus mais dedicados seguidores, seguindo pela intuição e não pela probabilidade. Antes disso, já passaram os três momentos definidores do álbum. Primeiro, um hino, literal, vibrante, imediato, cujo título diz quase tudo: People Want Peace. Claro está que os praticantes da religião Beatle verão aqui um aggiornamento de outro tema programático: Give Peace a Chance... de John Lennon. Mais adiante, surge Dominoes, um dos temas-chave deste capítulo de grandeza, em que o cantor apresenta a tese de que o passado não tem de valer o melhor da vida, tem é de descobrir-se a via para que o presente e o futuro venham a render tantas (ou mais) emoções e alegrias do que aquilo que deixámos para trás. É uma séria candidata à vasta antologia de Sir Paul McCartney - e isso resume o essencial. Por fim, a longa Despite Repeated Warnings, já interpretado de distintas maneiras, sendo as mais revisitadas a do comentário desgostoso com o brexit e a do libelo anti-Trump. A ter de escolher, opte-se por esta segunda direcção, tanto mais que o "protagonista" em causa aparece na pele de um capitão autoritário, desvairado, inconsequente e perigoso, insolitamente poderoso, apesar de todos os avisos repetidos..Paul trabalha, em porções desiguais, com dois produtores - um, Ryan Tedder, surge apenas na canção Fuh You, paradoxalmente utilizada como primeiro single. Para não perdermos mais tempo: saiu-lhe a fava. O outro, Greg Kurstin, não deixará, em futuras candidaturas, de apresentar Egypt Station (já agora: o título vem de um quadro pintado por Macca há trinta anos) como um argumento decisivo no seu currículo. E, no entanto, percebe-se que a sua função poderá ter passado sobretudo pelo papel de facilitador para o génio do homem que, ainda por cima, se diverte a piscar o olho aos Beatles, aos Wings e a todas as aventuras em que foi cabeça-de-cartaz. Em última instância, tudo depende da sua inspiração - muito alta, para este passo de mestre. Ganhamos uma última certeza: um dos motivos do êxito do Big Mac, o hambúrguer, é manter sempre o mesmo sabor, independentemente da latitude ou da época. Já com este Big Mac, o músico, temos direito a novos e convincentes condimentos. E não se ouve ninguém a reclamar..Egypt Station.Paul McCartney.Ed. Capitol/MPL.PVP: € 17,99